quinta-feira, 24 de abril de 2008

Blog (parcialmente) desativado

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Atendendo a pedidos foram anexados ao blog as "anotações do pregador" usadas nas cinco conferências do retiro e asinformações sobre como pedir os CDs com as conferências e homilias dos retiros de 2008, 2007 e 2005.

Conferências e Homilias do retiro em CDs

Quer conhecer as conferências proferidas por Dom Bernardo nos retiros da SAFTM? Quer ter um mãos um material precioso para partilhar em pequenos grupos de discussão? Quer rememorar na tranquilidade de seu lar, numa viagem de carro ou dirigindo no trânsito congestionado de uma grande cidade, as mensagens expostas no retiro? Adquira para si, ou para presentear, uma coleção de CDs com as conferências gravadas ao vivo nos últimos retiros pregados por Dom Bernardo.

Junto com o anúncio do retiro de 2008 foi lançada uma promoção com coleções de CDs com as conferências dos retiros organizados pela SAFTM:

2005 RUMO À ORAÇÃO CONTEMPLATIVA (coleção com 6 CDs)
2007 SEGUNDO JOÃO (coleção com 5 CDs)
2008 OS TRÊS BEIJOS (coleção com 6 CDs contendo 5 conferências e duas homilias)
PREÇO - R$30, cada coleção.

COMO PEDIR - Enviar e-mail ou carta especificando seu pedido

>>>>>economato@mosteirotrapista.org.br ou por carta para

>>>>>MOSTEIRO TRAPISTA
>>>>>Caixa Postal 11
>>>>>83870-000 Campo do Tenente, PR

O Mosteiro confirmará seu pedido e indicará valor do frete e as formas de pagamento (cheque ou depósito bancário).

quinta-feira, 13 de março de 2008

As Conferências do Retiro & Bibliografia

Os textos que seguem são apontamentos do pregador do VIII Retiro da Sociedade dos Amigos Fraternos de Thomas Merton, realizado no Rio de Janeiro, entre 7 e 9 de março de 2008.

Através de cinco conferências, segui­das por correspondentes “momentos de oração”, Dom Bernardo Bonowitz, OCSO, con­duziu esse retiro de fim-de-semana destinado a um grupo aproximado de cem pessoas.

Os textos abaixo foram criados para o uso do conferen­cista como um guia para sua exposição verbal dos temas abor­dados. Não é, portanto, um texto com­pleto destinado à publi­cação ou a uma circulação mais ampla. Sua distribuição é um gesto de generosidade do autor para permitir aos que assis­tiram às conferências com­parar estas anotações com o que ouviram e ano­taram. O leitor, portanto, deve ficar alerta para o fato que o texto só se completa com a exposição verbal do autor.

As conferências e homilias do retiro foram gravadas e estão disponíveis numa coleção de CDs que estão à venda no Mosteiro Trapista. (Maiores detalhes na postagem acima.)


BIBLIOGRAFIA

I. Obras de São Bernardo
1. Tratado Sobre o Amor de Deus (em Místicos Cistercienses do Século XII, Edições Subiaco)
2. Sermões para as Festas de Nossa Senhora (Vozes)
3. Tratado Sobre os Graus da Humildade e da Soberba (Abadia. N. Sra. Da Assunção de Hardehausen, Itatinga)
4. São Bernardo de Claraval e o Mistério de Cristo (pequena antologia de textos) editado por H. Cormier, Brasília)
5. Obras Completas (Edicíon Bilingüe - Castelhano/Latim- Biblioteca de Autores Cristianos)
6. Em inglês quase todas as obras de São Bernardo são disponíveis na série “Cistercian Fathers”(Tradução do Comentário sobre o Cântico, 4 volumes)

II. Biografia
7. Vida de São Bernardo Pierre Riché (Edições Loyola)

III. Estudos sobre São Bernardo
8. Étienne Gilson: The Mysticism of St. Bernard
9. Michael Casey: Athirst for God (Cistercian Publications)
10. Jean Leclercq: Cultura y Vida Cristiana (Sígueme)
11. Jean Leclercq: São Bernardo e o Espírito Cisterciense (pro manuscripto)
12. Bernardo Bonowitz: A Custódia de Coração em São Bernardo de Claraval (Revista Beneditina 12, Juiz de Fora)

IV. A Ordem Cisterciense
13. Os Cistercienses: Documentos Primitivos (Edições Lumen Christi e Editora Musa)

Primeira Conferência do Retiro

I. PRELÚDIO AO PRIMEIRO BEIJO

1. Já nos conhecemos há tantos anos – vocês, mem­bros da Sociedade Thomas Merton, e eu – que eu posso já lhes ter contado esta anedota. Mesmo se for o caso, acho que ela irá nos ajudar a começar.
Em 1996, quando cheguei ao Brasil, tentei mer­gulhar na literatura do país. Não que isto fosse um fardo; pelo contrário, era, e continua a ser, um prazer. Naturalmente, eu me esforçava para integrar ao meu vocabulário português aquilo que descobria nas obras-primas dos escritores brasileiros. Foi o que me levou, após várias semanas lendo “O Tempo e o Vento”, de Érico Veríssimo, a dizer a um dos monges mais ve­lhos, enquanto o acompanhava à portaria numa bela manhã de primavera: “Bom dia, meu bem.” Sua res­posta foi ao mesmo tempo engraçada e teologica­mente perfeita: “Não tão rápido!”.

2. Veja que ele não negou a possibilidade de intimi­dade. Simplesmente deixou claro que intimidade, não obstante quaisquer afirmações em contrário por parte da cultura moderna, não é instantânea, mas progres­siva. É uma meta que precisa de um caminho de apro­ximação. É um longo processo, belo e correto em todos os seus passos, se cada um dos passos for dado, e dado na ordem correta.

3. Todos nós queremos intimidade. Todos nós alme­jamos comunhão. Sobretudo com Deus. Desejamos isto, pois nascemos para isto. Fomos estruturados de tal forma que nem sequer possuímos a nossa identi­dade, a não ser em nosso relacionamento com Deus e através desse relacionamento. Isto faz parte daquilo do que significa termos sido criados “à sua imagem e semelhança”. É perseverando em sua imagem e bus­cando tornarmo-nos cada vez mais como Ele que ter­minamos sendo nós mesmos.

4. A energia que nos impele a aderir a Ele (o versículo da Escritura absolutamente favorito de S. Bernardo era: “Mihi adhaerere Deo bonum est”), a ir atrás Dele é o eros ou, no latim de Bernardo, amor. Este amor está no centro de nosso ser; talvez possamos dizer que é o centro de nosso ser. Mas não fomos nós que o fi­zemos. Foi Deus quem o formou e o colocou em nós, e é através dele (desse amor) que mais nos asseme­lhamos a Deus, Ele que é o Amor em Pessoa.

5. Este desejo de união com Deus é tão forte que é descrito pelos Padres, a partir de Orígenes, como um inebriar-se, ou ainda mais, uma loucura (eros maniakós, amor louco). Os loucos têm má fama por não terem discrição, paciência nem prudência. Que­rem o que querem quando querem e do jeito que que­rem. Por esta razão, não observam as conveniências, não aceitam a idéia de caminhar em passos, pelo me­nos no seu desejo. Querem tudo – agora. É por isto que o Cântico dos Cânticos, texto base de todo misti­cismo cristão, começa com um pedido do máximo: que Ele – Deus mesmo – me beije com o beijo de Sua boca.

6. Este nosso desejo não nos será concedido imedia­tamente – não pode sê-lo e mais tarde veremos por que –, mas será o cume de uma série de beijos prepa­ratórios. Mesmo assim, de acordo com S. Bernardo e toda a tradição mística, a pessoa tem alguma justifica­tiva para este ardor intempestivo. Qual justificativa? Que a experiência de tal intimidade, além de ser nosso desejo mais profundo, é também uma memória. É algo que aconteceu, algo que nós, como parte da fa­mília humana, experimentamos. Então não se trata somente de algo que queremos; é algo que soubemos. E sendo assim, ele muda da categoria de desejo gené­rico para a categoria de saudade.

7. Para compreender isto, temos de viajar para muito atrás no tempo, para os inícios de nossa espécie, para aquelas duas pessoas das quais proviemos e das quais somos – Adão e Eva, nossos protoparentes, como a tradição os denomina. De acordo com a Bíblia e com a sua interpretação patrística, Adão e Eva eram “con­templativos por natureza”. Suas mentes e seus cora­ções estavam incessantemente fixos em Deus, não como um dever ou uma obrigação, mas simplesmente como sua atividade principal – seu respirar-se espiri­tual. Sua vida interior era fundamentalmente intimi­dade com Deus. S. Bernardo, ao comentar a referência do Gênesis que diz que Deus colocou Adão no jardim do Éden para cultivá-lo e ará-lo, explica que o que Adão cultivava eram pensamentos contemplativos. Seu coração e sua mente fitavam Deus e ele crescia continuamente em sabedoria e em graça ao manter esta orientação da sua acies mentis (Gregório de Nissa diz algo semelhante em sua Vida de Moisés ao expli­car que, ao pastorear os rebanhos de Jetro próximo ao local da Sarça Ardente, Moisés estava, na verdade, pastoreando pensamentos contemplativos, pensa­mentos “noéticos”, na tradição grega). Adão foi, as­sim, o primeiro a “caminhar com Deus”. Deus caminhava com ele todos os dias na brisa do fim da tarde. A todas as outras criaturas, Deus permitiu que Adão desse um nome, mas foi o próprio Deus quem pronunciou o nome de Adão pela primeira vez (“Onde estás, Adão?”).

8. A unidade e perseverança do olhar de Adão a Deus era o que o mantinha em sua própria unidade. Ele era consistente e harmonioso consigo mesmo porque to­das as suas energias estavam voltadas amorosamente para o seu Criador e seu Arquétipo, de quem ele con­tinuamente recebia vida desimpedidamente. Todos os Padres são claros ao dizer que Deus criou a humani­dade deste modo – íntegra, reta, destinada à vida eterna. Em seus últimos sermões sobre o Cântico dos Cânticos, Bernardo fala longamente sobre o homem tal como Deus o criou, tal como Deus o desejou – simples, livre e imortal (Sermão 82).

9. Na grande e primordial tragédia da humanidade, o homem e a mulher desviaram o seu olhar de Deus. Não foi um momento isolado de negligência, um erro inoportuno. Foi uma decisão com conseqüências quase sem limites este desviar do olhar do coração para si mesmo e em seguida fazer as suas escolhas não com base na comunhão com Deus, mas em ter­mos daquilo que parece vantajoso e desejável para si mesmo (deixando Deus fora de consideração). É tanto a causa quanto a conseqüência do pecado original; o homo incurvatus in se.

10. Para os Padres, e acredito que para nós também, é importante ler esta página crucial da Escritura não tanto etiológica quanto existencialmente. Uma das ri­mas mais antigas da poesia inglesa coloca isto desta maneira: “Na queda de Adão/ Todos nós pecamos” (In Adam’s Fall/ We sinned all). Esta escolha de nos distanciarmos de Deus a fim de fazer de nós mesmos o objetivo e o objeto de nossa própria satisfação é algo que todos nós fizemos e fazemos. São Paulo se esforça muito em comunicar isto no magnífico e difí­cil capítulo sexto da sua Carta aos Romanos: “Todos morreram, porque todos pecaram.” Todos nós somos orientados a fazer a escolha ruim entre as duas possi­bilidades de focalizarmo-nos em Deus ou focali­zarmo-nos em nós mesmos, e de fato todos nós a fazemos.

11. Quais são as conseqüências desta trágica escolha? A primeira e pior é uma alteração profunda de nossa experiência de Deus. De objeto de nosso desejo, ale­gria e confiança, Ele se transforma em temível e peri­goso. A primeira coisa que Adão e Eva fazem após inventarem o pecado é ir se esconder. “Onde estás, Adão?”. “Eu percebi que estava nu e fiquei com medo”. O relacionamento com Deus é transformado: de um relacionamento de amor, passa a ser um rela­cionamento de poder; de um relacionamento de confi­ança, a um de desconfiança. É uma posição incômoda, e finalmente insustentável, viver sempre na presença-ausência de um Deus opressor, muito poderoso. S. Bernardo afirma que o corpo não pode suportar uma ferida aberta por muito tempo. Ele ou se curará ou vai formar uma cicatriz. Analogicamente, a ferida de nossa ruptura com Deus não pode ser sustentada por muito tempo. Ou haverá um retorno a Ele, ou Ele será excluído de nossa mente enquanto objeto de nossa consciência (awareness). Toda a tradição monástica, em particular a Regra de S. Bento no capítulo sobre a humildade, coloca uma ênfase imensa na reaquisição da memoria Dei, “ter consciência de Deus”. Ao fazê-lo, ela deseja lutar contra a tendência muito forte a “esquecer Deus” – oblivio Dei – a viver sem Deus, como se Deus não existisse (a breve definição do salmo de um “estulto”).

12. A segunda conseqüência é um despedaçar de nossa unidade original. Enquanto antes tínhamos um só pensamento e um só desejo (não que fôssemos in­capazes ou nos esquecêssemos da realidade criada, mas tudo era experimentado e fruído num “único raio de contemplação” – Ricardo de S. Vítor), agora somos todo-dispersão, todo-distração. Queremos uma multi­dão de coisas; estamos preocupados com uma infini­dade de assuntos. Pensamos que teremos paz ao atingir o objeto do desejo do momento, só para desco­brirmos que, ao consegui-lo, o desprezamos e saímos caçando outro objeto. Achamos que nossa mente terá descanso ao resolver a preocupação do momento, só para descobrir que sempre há outra preocupação vi­rando a esquina e que, na verdade, aprendemos a gostar de ficar preocupados (S. Bernardo utiliza um versículo do Antigo Testamento para descrever este hábito: “Efraim aprendeu a amar debulhar o solo”). Numa imagem altamente violenta, Bernardo nos des­creve como uma tela de vidro, um vitral, que foi que­brado por um martelo em milhões de cacos. Nosso desejo e nossa atenção foram quase que irremedia­velmente fragmentados. É um otimismo impressio­nante por parte dos Padres monásticos o fato de propor como objeto de compromisso ascético a “reu­nificação do desejo”.

13. Esta fragmentação mostra-se diariamente na guerra interior que travamos conosco e sobre nós mesmos. Introduzimos na criação o princípio da rebe­lião, diz Bernardo. E agora é este mesmo princípio que se vinga de nós. Ao retirarmos o nosso espírito de ser guiado pelo Espírito Santo, nosso corpo ia se reti­rando de ser orientado por nosso próprio espírito. Nossos corpos não mais obedecem aos nossos espíri­tos; eles não mais “ouvem a razão”. A razão, a pre­sença da Inteligência Divina dentro de nós, tornou-se a mais fraca das nossas faculdades. Para Bernardo, ela é o pai impotente de uma família desordeira. A von­tade desenfreada é muito mais forte do que ela, e ainda mais fortes são os impulsos incessantes que re­cebem o nome coletivo de “concupiscência”. Nosso eu interior tornou-se uma família disfuncional. A ra­zão, posta no ser humano para perceber, pesar, julgar e então decidir, foi completamente subjugada pelo de­sejo desfocado, não-examinado e inquieto. Então não estamos em paz (o texto clássico bernardiano sobre este tema é o seu “Sermão sobre a Conversão para os Clérigos”. A tradição diz que, após ouvi-lo pregar, quarenta estudantes de teologia abandonaram a uni­versidade e voltaram com ele para Claraval).

14. Há outras duas conseqüências igualmente sérias: ignorância / falta de atenção e dureza de coração. Para Bernardo, antes de empreendermos a vida espiritual, não reconhecemos quem somos e não percebemos a realidade (e gravidade) de nossa situação. “Se você não conhece a você mesma, ó mais bela das mulheres, tome lugar atrás do rebanho de seus vizinhos.” A alma, o eu interior, é esta mais bela das mulheres. Mas, desviada de Deus, ela gradualmente perde cons­ciência da sua identidade e da sua responsabilidade. Torna-se reducionista na sua compreensão de si mesma (cada vez mais nos tempos mo­dernos, a ponto de questionar a existência de uma alma, onde ela é mais ela mesma) e na sua compreensão do propósito da vida. Sem refletir, a pessoa permite que “o mundo” defina o que é a vida: educação, emprego, namoro, casamento e família, la­zer e descanso, pôr de lado a morte para o último (e além do último) instante ou antecipá-la porque a jornada até ela pode ser demasiado dolorosa, física ou psicologicamente. A vida se torna barata porque a ignorância negou a sua transcendência. A vida, ao invés de ser gloriosa, se torna tolerável, mantida através de uma série de pequenas satisfações.

15. E a dureza de coração? Nós mesmos somos esta dureza, na medida em que estamos armados contra todos os apelos de Deus a despertar e voltar atrás. Algumas vezes, Bernardo vê o próprio Deus de mãos atadas diante desta situação. Inspirações, graças ou advertências não penetram o coração, não deixam sequer uma impressão. Do dia da queda até o dia do Juízo Final, toda a história da salvação é “Deus em busca do homem” (como o título do livro de Abraham Heschel o expressa), mas o homem pode se tornar impermeável, tanto que pode continuar inacessível mesmo quando desejaria que as coisas o tocassem.

16. Nossos pontos de partida na viagem para a união mística com Deus são vários. Por um lado, fomos feitos para ela, já a experimentamos, nunca podemos erradicar completamente o nosso desejo dela. Por outro, nós a rejeitamos, a perdemos, fazemos o máximo para prosseguir sem precisar dela, construímos uma casca que torna muito difícil para nós receber o auxílio de Deus para recuperá-la. Deus é o Deus do real e não apagará a história humana para começar tudo de novo (será que simplesmente não repetiríamos nossa performance anterior?). Mas Ele toma o nosso desejo e faz dele uma estrada de volta a Ele, uma estrada de beijos, na mentalidade bernardiana. Estes beijos farão o mesmo percurso que nossa alienação de Deus nos fez cobrir, só que, desta vez, estaremos viajando na direção correta. Mestre Eckhart diz que a distância da volta da alienação é do mesmo tamanho que a da ida. Que seja assim. Não é isto que importa, mas sim que, através do beijo dos pés, das mãos e da boca do Cristo Deus, cada passo dado é um passo mais para perto da união com Ele. Desde o primeiríssimo instante, nosso desejo poderia e deveria ser o de experimentar o beijo de Sua boca. É isto que nos vai fazer caminhar e que nos manterá em movimento. Mas, como S. Tomás disse: “Primeiro na intenção, último na execução.” O que desejamos desde o início será o fim de nossa jornada. Agora é tempo de começar a jornada, aos pés de Cristo. +

Segunda Conferência do Retiro

II. O BEIJO DOS PÉS

1 Começamos por baixo: pelos pés. Teologica­mente, este beijo é conhecido como “justificação”; não, entretanto, como uma declaração de “ino­cente” feita pelo Deus Juiz em nosso favor, mas como uma verdadeira restauração do relaciona­mento entre Ele e cada um de nós. Como esse mi­lagre acontece?

2. Na última conferência, Bernardo (o santo, não o pecador diante de vocês hoje) nos mostrou clara­mente que a ruptura no relacionamento é baseada numa “deshumanização” de nossos corações. Esquecimento de Deus, ignorância das realidades espirituais da vida e de nossa verdadeira identi­dade como seres humanos, impermeabilidade à graça – todas estas são doenças cardíacas. Por esta razão, nenhuma declaração judicial pode arrumar as coisas entre Deus e nós; o que é necessário é uma radical “mudança do coração” (conversio cordis).

3. De fato, o coração de Deus nunca mudou a nosso respeito. Mesmo após o nosso afastamento Dele, continua sendo como era antes. “Os meus pensamentos são pensamentos de paz”, diz Deus, embora estes passem despercebidos, assim como nossas existências inteiras, em todas as suas dimensões, continuam a ser fundadas na sua bene­volência. Nós aceitamos avidamente os benefícios, mas somos cegos para com o Benfeitor por trás deles, que continua sendo amoroso e estando de braços abertos apesar da falta de correspondência de nossa parte. As doenças do coração acima refe­ridas fizeram com que ficássemos quase exclusi­vamente “carnais”, no sentido de tornar-nos incapazes de experimentar o espírito. Deus, como diz S. João, é Espírito, e é, portanto, para nós, invisível, incognoscível. Somos, como Bernardo diz, muito mais suscetíveis a interpretar as bases da existência como consistindo em destino, sorte ou “forças” indefinidas, ou na mera atividade humana (um mundo fechado à transcendência).

4. Deus consegue tornar-se visível a nós, comu­nicar a verdadeira natureza das Suas intenções a nosso respeito e demonstrar a imensidade da Sua benevolência através da Encarnação do Verbo. Cristo é, diz Bernardo, citando e brincando com uma citação da carta de Paulo a Tito, a humanitas Dei – a humanidade de Deus. Em latim, no qual Bernardo era um mestre consumado, humanitas significa tanto a “condição de ser um ser humano” quanto a “atitude de ser profundamente humano” – isto é, ser gente e gentil ao mesmo tempo. Toda a existência de Cristo, do berço à sepultura e à res­surreição, é uma transposição perfeitamente bem-lograda de Deus no humano. Cada uma de suas ações comunica a realidade de Deus e suas dispo­sições para conosco.

5. O que exatamente aprendemos sobre Deus em Cristo? Que Ele se importa conosco, que se sente movido por todas as nossas necessidades, que toma as nossas dores sobre nós, que nos cura, que não nos condena, que age como se fosse o nosso servo, que tem poder sobre todas as coisas que nos atemorizam (demônios, doença e morte), que compartilha a Si mesmo para “nos enriquecer com Sua pobreza”, que nos alimenta e nos sustenta (multiplicação dos pães), que não nos esconde nada, mas deseja que conheçamos “os mistérios do Reino”, que nos ama a ponto de preferir nossa ale­gria eterna à Sua sobrevivência humana.

6. Tudo isto bate em nosso coração, martela em nosso coração, perfura o nosso coração. Nós não conhecíamos a Deus, ou pensávamos que Ele fosse muito diferente, um Deus abaixo dos nossos pa­drões, digno de ser rejeitado por nós (como real­mente o foi na Paixão). Esta luz divina em Cristo que revela Deus a nós tem um segundo, e insepa­rável, efeito igualmente importante: revela-nos a nós mesmos. Na medida em que começamos, uma vez mais, em Cristo, a ver Deus como Ele é, novamente começamos, em Cristo, a ver-nos como somos. E nem tudo o que vemos a nosso respeito é bonito.

7. Estas duas consciências se unem em uma – a consciência de Deus como Amor, como Pai, como Senhor e a consciência de nossa negligência em relação a Ele e de haver levado uma vida inteira­mente autocentrada, fixada em nossos objetivos próprios e freqüentemente esquecida ou destrui­dora do bem real de nosso próximo. A fusão destas duas consciências é a consciência do pecado, de ser um pecador. Interessante: só é possível ser um pecador quando Deus existe e quando ele é radi­calmente bom. Esta experiência é classicamente descrita como compunção na Igreja Ocidental (penthos na Igreja Oriental), de pungere, perfurar. Em Cristo, Deus operou uma ruptura na dureza de nossos corações. Colocou o dedo no velho, mara­vilhoso, relacionamento, fez com que nos sentís­semos pesarosos por tê-lo perdido e, por fim, profundamente arrependidos por tudo isto ter sido culpa nossa. É por isto que a compunção é caracte­rizada por dois fenômenos físicos: uma sensação de queimação e o derramar de muitas lágrimas.

8. Compunção, entretanto, seria insuportável – seria o próprio inferno – se fosse somente a cons­ciência do pecado e a experiência de perda. Seria tão terrível que, apesar de toda a sua razão obje­tiva de existir, nós encontraríamos um meio de fu­gir dela, de endurecer o nosso coração mais e mais decididamente. Isto é de fato o que ocorre quando falta a intuição do outro aspecto da compunção: a segurança do perdão. O Cristo amoroso em cuja presença discernimos a verdade sobre Deus e so­bre nós mesmos é o Cristo que diz à mulher peca­dora na casa de Simão, o Fariseu (assim como a tantos outros): “Os teus pecados estão perdoados.”

9. Esta conjunção é o beijo dos pés de Cristo e a cena de Lc 7 é a base escriturística para a descri­ção de Bernardo. Todos estes aspectos – encontro com Deus tal como Ele é, experiência de si mesmo como pecador, arrependimento e a experiência do perdão – ocorrem unidas num único fenômeno em muitos lugares do Evangelho. Pode-se pensar no Filho Pródigo abraçando o seu pai, ou no bom la­drão recebendo a promessa do Paraíso de Cristo na tarde da Sexta-Feira Santa, ou no publicano peca­dor que ficava repetindo com os olhos baixos: “Senhor, tende piedade de mim, pecador” e que voltou para casa “justificado”. É o ponto de virada no destino espiritual de alguém (e, infelizmente, sempre inclui uma segunda pessoa incapaz no momento de adentrar na experiência: Simão, o fi­lho mais velho, o outro ladrão, o fariseu dando graças no templo por não ser como os outros homens).

10. S. Bernardo está preocupado se este beijo não vai conseguir atrair a nossa atenção ou se não vai interessar a Deus. Ao contrário. Esta experiência de arrependimento e perdão marca o começo da santidade. “É aí (aos pés de Cristo) que a etíope mudou a sua pele e recobrou a sua inocência. É aí que ela deixou o fardo dos seus pecados e se revestiu de santidade (“Sancta peccatrix peccata deposuit, induit sanctitatem”). Quanto a Deus, temos o testemunho dos Evangelhos de que “há mais alegria no céu entre os anjos de Deus por um só pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não necessitam de conversão”.

11. Este beijo inicial de compunção não deve ser entrecortado – é um beijo demorado. Não é preciso ter pressa para terminar com ele, para levantar a cabeça e buscar beijos melhores, mais elevados. Devemos esperar de cabeça baixa e expressão constrangida até que Cristo diga a palavra de per­dão. Isto também é misericórdia, mais do que vin­gança. Arrependimento demanda tempo. Houve um longo acúmulo de atos, atitudes e omissões que ofenderam a Deus e, mesmo psicologica­mente, precisamos de tempo para lembrar de tudo isso e lamentá-lo devidamente. É por isto que S. Bernardo diz que o trabalho do noviço é chorar. Geralmente, o noviciado monástico é uma expe­riência intensa do primeiro beijo – o escancarar do coração, o encontro com sua própria pecaminosi­dade, as lágrimas, a palavra libertadora de Cristo. Doloroso no início, torna-se consolador esvaziar o coração da culpa e da amargura acumuladas, dei­xando sair tudo, “sacudido pelos soluços benfa­zejos” (salutaribus intra se succussa singultibus). Guilherme de St-Thierry, grande amigo de S. Ber­nardo, dizia que o que ele mais desejava era chorar no colo de Deus.

12. De fato, a compunção não chega a um fim. Não se trata aqui de insinuar que o perdão de Deus é condicional ou revogável, mas sim que a meta­nóia continua sendo a base permanente da vida espi­ritual. Na tradição monástica ela se torna um modo de vida. É viver em “alegre pesar” ou “ale­gria pesarosa”, pesar por haver ofendido a um Deus que se torna cada vez mais amável aos nos­sos olhos, pesar pelos pecados que aparecem cada vez mais claramente em suas verdadeiras cores (Ícone de Nossa Senhora); alegria porque agora pertencemos de coração e alma a este Deus, ale­gria em experimentar uma vez após a outra, e sempre como algo novo, a graça do perdão. Sere­mos sempre pecadores perdoados; tire esta funda­ção e a casa espiritual desmorona. Ao mesmo tempo, a experiência da compunção será gradual­mente absorvida em formas maiores de intimidade com Deus.

13. S. Bernardo, que é capaz de tomar um beijo e transformá-lo em três (raciocínio: se a alma pede para ser beijada com o beijo da boca de Deus, coisa tão óbvia que não precisa ser dita, deve ser porque Deus pode ser beijado em outras partes), toma aqui um pé e o transforma em dois. Com­punção, como vimos, é um equilíbrio dinâmico entre pesar e alegria – pesar por haver abusado da santidade de Deus, alegria por ter recebido sua mi­sericórdia (iudicium / misericordia). Não é difícil perdermos o nosso equilíbrio; Bernardo, falando autobiograficamente (ou pseudo-autobiografica­mente) diz que, em diferentes ocasiões, inclinou-se demais seja para um lado, seja para outro. O Cristo Senhor tem dois pés, diz Bernardo, e deve­mos apegar-nos persistentemente a ambos. Com estes dois pés, Cristo caminha em nossa mente – quer dizer, forma o conteúdo de nossa memória. Se nos apegarmos demasiadamente ao pé da santi­dade de Deus, o que predominará em nós será o medo: medo do que fizemos e daquele a quem o fizemos, e a possibilidade de condenação mesmo agora. Isto nos torna demasiadamente rigorosos em nossas práticas, rígidos em nossas atitudes, tensos em nossas emoções. Se, por outro lado, pensarmos exclusivamente na misericórdia de Deus, o que toma conta de nós é a esperança. Es­perança é bom, evidentemente, mas não uma espe­rança não nuançada pelo temor divino. Tal esperança nos torna laxos em nossas responsabili­dades, negligentes em nossa vida espiritual, des­cuidados na abordagem de nossa vocação. Esta é a maneira como Bernardo afirma um princípio que lhe é caro ao coração: os dois piores pecados são o desespero e a presunção. O caminho para além de ambos é atrelar em nossa mente estes atributos gêmeos de Deus – justiça / santidade e misericórdia, como diz o salmista: “Quero cantar a misericórdia e a justiça” (Sl 100).

14. Não obstante sua renomada (e genuína) casti­dade, Bernardo sabia por experiência pessoal que um beijo cria tanto satisfação quanto insatisfação. É o cumprimento do desejo e o estímulo do desejo – de uma satisfação ainda maior. Dificilmente po­deríamos reclamar de Deus se o máximo que ele concedesse ao pecador fosse a remissão dos pe­cados e a redescoberta do relacionamento. Mas nosso amor é incansável e não pode parar por aí (na verdade, não pode parar nunca) e nosso eros é somente um pálido reflexo do Seu eros por nós. Isto quer dizer que chegou a hora do beijo da boca, o que quer que isto signifique (esse beijo só é conhecido por aquele que o experimentou). Lem­bremo-nos da sabedoria do monge de Novo Mundo: “Não tão rápido!”. Deus realmente deseja levar-nos a esta plenitude, mas por graus. Ainda há um grau intermédio a ser atingido, um pulinho, mais que um pulo diretamente dos pés à boca. Este segundo estágio, este segundo beijo, provavel­mente é o que levará mais tempo para se realizar. Compunção demora a vir, mas, uma vez que co­meça, adquire grande velocidade e intensidade. O segundo beijo é mais deliberado, mais reflexivo, mais pacífico. Trata-se de um processo de recons­trução da pessoa, e o nome de Bernardo para ele é o beijo das mãos. Nossa aceitação deste lento es­tágio médio é muitíssimo agradável a Deus. Baseia-se numa das virtudes centrais do catálogo bernardiano: modéstia (verecundia). Então, na próxima conferência, se Deus quiser, nós beija­remos a sua mão. +

Terceira Conferência do Retiro

III. O BEIJO DA MÃO

1. S. Bernardo, infelizmente, nunca teve o prazer de ouvir Carol Channing cantando: “um beijo na mão pode ser muito elegante, na moda, mas diamantes são os melhores amigos de uma moça”. Mesmo se tivesse escutado, pediria licença para discordar, ou pelo menos para distinguir. Depende da mão de quem você está beijando. Se estiver beijando a mão de Deus com o beijo da amizade, você não poderia desejar melhor amigo.

2.Este segundo beijo dado na mão de Deus e dado pela mão de Deus é o dom da santificação. Pelo pri­meiro beijo, humilhamo-nos aos pés de Cristo em compunção e fomos acolhidos de volta ao relaciona­mento filial com Ele. No segundo beijo, Sua divina mão nos levanta (erigere) a fim de estarmos em pé diante dele, “santos e justos na sua presença, todos os dias de nossa vida”, como cantamos no Benedictus. É-nos dada de volta a nossa beleza moral.

3. No que esta santidade consiste? Na liberação pro­gressiva de tudo dentro de nós que nos faz agir contra nossos melhores interesses, nossos desejos mais pro­fundos. Todos nós conhecemos a famosa passagem de Rm 7 onde S. Paulo lamenta o paradoxo de não poder fazer o que realmente quer, mas ver-se compelido a fazer o que realmente não quer. Ele vive profunda­mente contrariado consigo mesmo. Seus fios elétricos foram trocados e todos os dias ele acaba fazendo o não-desejado e deixando de fazer o desejado. “Quem poderá me libertar desta situação?”, exclama angus­tiado. “Deus que nos deu a vitória em Cristo” é sua alegre resposta à sua própria pergunta.

4. Este é o segundo beijo – “liberdade de espírito” (libertas spiritus). Bernardo começa chamando-a de continentia, que pode parecer um termo negativo ou repressivo, mas que está plenamente em acordo com a tradição monástica ascético-mística. Em seus estágios iniciais, liberdade é a capacidade de parar de fazer aquilo que involuntariamente nos vemos compelidos a fazer (embora compelidos por nós mesmos) e que nos deforma. É liberdade permanente e estável de tre­mendas pressões que até então nos têm forçado a ceder, dia após dia, a impulsos de irritação, ansiedade, tristeza, auto-absorção, timidez, desconfiança, so­lipsismo, indulgência em prazeres compensatórios. Estas eram as pressões que nos empurravam a come­ter pecados concretos dos quais nos arrependemos na época de nosso primeiro beijo. Agora nos é oferecida a oportunidade de libertar-nos não somente das ações, mas também do impulso insistente por trás das ações.

5. Como participamos neste processo de libertação? Num dos capítulos à sua comunidade (De Diversis, 17), Bernardo fala de três custódias: das mãos, da lín­gua e do coração – de atos, palavras e pensamentos, diríamos. Estas custódias representam uma crescente sensibilização àquilo que está dentro de nós e, de modo correspondente, a uma capacidade maior de es­colher nossos comportamentos, palavras e pensa­mentos, que termina como uma escolha firme e fixa do bem. Como S. Agostinho diz: “Liberdade é a capa­cidade de sempre escolher o bem.”

6. Na medida em que nos refreamos e não cometemos atos que reconhecemos como sendo prejudiciais ou opostos à vontade de Deus, começamos a escutar-nos a nós mesmos. Não que não falássemos antes, mas não identificávamos as forças passionais que faziam parte da nossa fala. O autocontrole (continentia) que exercemos sobre as nossas ações torna possível uma atenção às verdadeiras intenções daquilo que dizemos e da carga emocional por trás do que dizemos. Todos nós já tivemos a experiência de contar uma piada que saiu pela culatra, que o outro levou a mal. Antes, atri­buíamos sua reação à sua hipersensibilidade. Agora percebemos que realmente pode ter havido uma indi­reta grosseira no meio da nossa anedota. Percebemos que grande parte do que dizemos não tem sentido: dito somente para preencher um silêncio desconfortável ou para nos distrair de coisas que poderiam ter sido ditas dentro de nosso silêncio interior.

7. Se formos capazes de passar da custódia das mãos à custódia da língua – se formos capazes de falar so­mente o que devemos falar (pergunta feita a S. Sil­vano) –, começaremos a ouvir-nos pensar. Este é um trabalho de muitos anos – a habilidade de registrar conscientemente nossos pensamentos, de acompanhar nossos pensamentos momento após momento – ava­liá-los e fazer uma triagem. Num nível ainda mais profundo, está a percepção dos pensamentos profun­dos, subjacentes, que entram na composição da nossa personalidade e que estão sempre criando pensa­mentos pequenos, concretos, como epiphenomena. Segundo S. Bernardo, pode ser difícil passar por isto, porque esses pensamentos freqüentemente estão pre­sentes em nós não somente como produções da nossa interioridade, mas como receptividade a sugestões demoníacas. São tentações, como as três que lemos ter Jesus experimentado no deserto. Todavia, não está além do alcance da nossa liberdade identificar cada vez mais perfeitamente estes pensamentos, resistir a eles e por fim conquistá-los.

8 .Uma questão poderia ser colocada: com todo este trabalho requerido da nossa parte, porque chamar este processo de beijo divino? Esta é uma pergunta im­portante, porque manifesta uma compreensão inade­quada do relacionamento entre graça e liberdade. A graça nunca é uma substituição da nossa liberdade. Deus não nos pede para sacrificar ou entregar a nossa liberdade, prometendo-nos em troca que nos torna­remos “bons”. O trabalho da graça é a progressiva capa­citação da nossa liberdade. Quando Deus “beija nossa liberdade”, por assim dizer, e nós aceitamos este beijo de Deus em nossa liberdade (que, apesar de tudo, é a escolha básica da nossa liberdade: estar ou não aberta ao influxo de Deus), descobrimos que so­mos capazes de fazer o que queremos e devemos. Deus não o faz por nós – permanece sendo nosso dever fazê-lo. E, ao mesmo tempo, não o fazemos em isolamento – Deus não fica a uma distância para ver se vamos fazer certo ali, mas está dentro da nossa li­berdade, oferecendo-se a ela constantemente, inspi­rando-a constantemente, iluminando-a constante­mente, a fim de que possamos fazer o que realmente desejamos fazer.

9. Por esta razão, Bernardo afirma que as duas dimen­sões deste segundo beijo são latitudo e fortitudo. Por um lado, Deus continuamente dilata (latitudo) o es­paço de nossa liberdade. Cada vez mais, as nossas ações, palavras e mesmo os nossos pensamentos e imaginações não são jogados sobre nós, mas são se­rena e refletidamente tomados por nós. Com o passar dos anos, por exemplo, Ele lixa a nossa irritabilidade, que exercia uma influência negativa sobre nossos rela­cionamentos e colocava uma margem de insatisfação em nossa existência cotidiana, transformando-nos em resmungadores assumidos. A diminuição de nossa irri­tabilidade é um aumento de liberdade. Não mais somos “programados” para ser insatisfeitos com a nossa existência ou para tornar os outros vítimas de nosso mal-estar. Percebemos a tendência, mas senti­mos uma leveza, uma capacidade de pular isto. Por outro lado, este beijo é uma fortitudo. Talvez pudés­semos compará-lo a uma verba bilateral (“matching grant”), onde, se meu mosteiro conseguir levantar dez mil reais, haverá um compromisso do Banco Tal de contribuir com outros dez mil reais. Eu atuo na minha liberdade, na medida em que sou capaz, e Deus confirma a escolha, lhe dá substância e durabilidade, impede-a de cair para trás sobre si mesma, capacita-me para que eu escolha corretamente numa próxima vez. Então talvez seja ainda mais generoso do que um “matching grant”.

10. Para Bernardo, esta consciência do quanto Deus efetivamente promove / sustenta a nossa liberdade é muito importante. Sem isto, corremos um sério risco de falta de verdade espiritual. Lembra-se do duplo risco do primeiro beijo, de cair tanto em esperança excessiva quanto em temor excessivo? Aqui o risco é o de receber este segundo beijo sem dar-se conta de que ele foi dado. De certo modo, este perigo é um re­trocesso ao período anterior à conversão, quando achávamos que a existência era toda feita pelo homem e desenvolvida por ele. Aqui, transposto em outra chave, o perigo é atribuir exclusivamente a nós mes­mos a transformação da nossa liberdade. Isto, diz Bernardo, significaria que, ao invés de beijar a mão de Deus em gratidão (maior dentre todas as virtudes ber­nardianas), acabamos beijando a nossa própria mão, agradecendo só a nós mesmos por aquilo que a graça operou em nós. Há somente uma palavra para des­crever o que tal atitude seria: feia.

11. Esta época do segundo beijo, que faz paralelo com a segunda renúncia nos escritos de Cassiano, assim como o conteúdo básico da Regra de S. Bento, é para S. Bernardo um tempo muito feliz. Ele não pensa tanto nele em termos de esforço, embora requeira es­forço. Não pensa tanto nele em termos de luta contra os nossos inimigos espirituais, embora a luta seja neces­sária. Para ele, é um tempo de vitórias e, por­tanto, um tempo de cantar, um tempo de cantos de louvor. É claro para ele que Deus será – está sendo – vitorioso na alma que Ele trouxe de volta para si em arrependimento. Deus não vai parar na metade deste segundo beijo. Num dado momento, Ele irá levantar decisivamente a pessoa para além do seu hábito peca­minoso contra o qual a pessoa tem batalhado por anos. Livre! E a pessoa canta de alegria. Em outro mo­mento, Ele colocará em poder da pessoa a capacidade de praticar consistentemente uma virtude que até en­tão lhe escapava. Hora de um segundo canto. Em ainda outro momento, Ele abrirá a mente da pessoa para uma compreensão muito mais profunda de um texto da Escritura ou de um dogma em particular. Isto também será fonte de alegria e, da mesma forma, será uma poderosa influência positiva em nossa liberdade moral. Assim como o Antigo Testamento é um livro de cantos preliminares de louvor que conduz ao Cântico dos Cânticos, que é a Encarnação e a união de Cristo e da Igreja, assim também esta restauração gra­dual da nossa liberdade é uma série de cânticos de ação de graças e de louvor, preparando-nos para o nosso Cântico dos Cânticos individual, a experiência do terceiro beijo. Para mim, este é um dos aspectos mais atraentes de S. Bernardo e dos Padres Cister­cienses. O esforço ascético é colocado dentro do seu próprio contexto de renovação da plena intimidade entre Deus e a criatura espiritual. Por esta razão, em­bora duro, ele não é triste ou tenso; é tocado e tingido pela alegria do que está se realizando.

12. Crescimento em virtude, diz Bernardo, também faz crescer em confiança (fiducia). Crescimento em confiança, por sua vez, faz crescer em ousadia de de­sejo. Tendo sido posto em pé pela mão de Deus e tendo beijado a mão de Deus, a noiva não pode res­tringir-se a reiterar o seu desejo inicial. Bernardo in­venta um diálogo gostoso entre os anjos e a alma (o cristão místico), que nós conseguimos compreender muito bem, porque espelha o nosso próprio desenvol­vimento. Os anjos a provocam e dizem: “Você se lembra de como prometeu que ficaria satisfeita com o primeiro beijo, se Deus lhe desse a graça do arrepen­dimento vivificante?” “Sim, mas...” “E você se lembra de como deu a sua palavra que, se Deus lhe mostrasse a imensa misericórdia de renovar a sua semelhança (similitudo) em você pela restauração do funciona­mento da sua liber-dade, você nunca mais voltaria a pedir algo de novo?”. E o que a noiva responde: “Não posso descansar enquanto ele não me beijar com o beijo de sua boca. Não é que eu seja ingrata. Mas é que eu amo. Tento raciocinar comigo mesma, tento manter-me dentro dos limites da modéstia, mas meu desejo me arrasta e meu anseio me incita. Há tanto tempo que espero e vivo fielmente de acordo com a Sua vontade. Entreguei-Lhe minha vida como ofe­renda. Agora quero que esta oferenda seja suculenta e saborosa. É tudo o que eu peço: que Ele me beije com o beijo da Sua boca.”

13. Deus, que infundiu o desejo e cujos dons ante­riores (compunção e liberdade / pureza de coração) não são senão incentivos para um desejo ainda maior, não tem a intenção de recusar à noiva o seu desejo. Era só uma questão de prepará-la. Estes dois beijos fizeram dela outra pessoa – uma pessoa capaz de re­ceber, de levar e de responder ao imenso privilégio que lhe está para ser dado. Qual é este privilégio e quais efeitos ele produz na alma? Nós veremos isto nas duas últimas confe­rências. Amanhã o Cristo Senhor realizará o de­sejo da sua criatura. +

Quarta Conferência do Retiro

IV. O BEIJO DA BOCA

1. Numa jogada muito interessante, S. Bernardo es­colhe descrever o beijo final, objeto do desejo mais fundamental e ardente da pessoa, em termos daquilo que ele não é mas quase é. A tensão entre este beijo – a mais alta união atingível por uma criatura – e o outro beijo – inatingível por qualquer criatura – mar­cará toda a sua abordagem desta graça sublime.

2. Ontológica e historicamente anterior a qualquer beijo – a qualquer intimidade, qualquer união – entre Deus e Sua criatura (por mais favorecida que esta seja), é o beijo eterno trinitário. Este “beijo” entre o Pai e o Filho é a própria mutualidade dinâmica da vida trinitária. É o ato recíproco que constitui as rela­ções trinitárias. Isto é, este beijo é o “conhecimento” absoluto (abraço, posse) e doação de Si do Pai ao Filho e o “conhecimento” absoluto que o Filho tem do Pai. É o ato eterno, primário, pelo qual o Pai, conhe­cendo a Si mesmo, gera o Filho, que é a plenitude do Pai, conhecido pelo próprio Pai, conhecido como essencialmente um e pessoalmente outro. Este ato se “completa”, por assim dizer, na resposta do Filho, co­nhecer como ele é conhecido, conhecer tão comple­tamente e tão “autodoadamente” como o Pai o conhece. Temos a tendência instintiva de pensar em conhecimento como “aquisição”. Conhecemos assi­milando para nós. Entretanto, o conhecimento trinitá­rio (base de todo conhecimento) é extático. O Pai conhece o Filho ao sair de si mesmo, ao dar-Se sem limites. O “Filho conhecido” é a autodoação ilimitada do Pai para fora de Si mesmo. O Filho conhece o Pai ao derramar-Se radicalmente de volta no Pai, ao esva­ziar-Se no Pai. Este conhecimento como dom de si é, assim, também amor irrestrito, amor que conhecemos melhor, diz Bernardo, quando se encarna e, portanto, do lado do Filho. A aceitação da paixão por parte do Filho é um Liebestod, uma doação total de sua vida por amor ao Pai. Este conhecimento e este amor es­senciais e totais que o Pai e o Filho têm um do outro e um para com o outro é o seu “beijo”.

3. É isto, diz Bernardo, que nunca podemos compre­ender. Nunca podemos ser nem o Pai nem o Filho, nunca poderemos ser um dos participantes deste abraço essencial. Nunca poderemos conhecer total­mente o Pai ou o Filho (como Gilberto de Hoyland, outro Padre Cisterciense diz, somente o consubstan­cial pode conhecer o consubstancial). Mesmo assim – e eis aí o milagre –, enquanto não realizamos o beijo trinitário, não somos excluídos dele. Por desígnio di­vino, somos incluídos nele. Como?

4. Pensando bem, diz Bernardo, um beijo é um ato iniciado por duas pessoas. Uma vez que começa a acontecer, ele é também uma realidade em si – em forma física, é a unidade / mutualidade entre os dois “beijadores”. Acontece que, neste caso (os dois beija­dores sendo ambos pessoas divinas), a unidade que os une substancialmente não é uma coisa, mas uma pes­soa. O conhecimento e amor recíproco dos dois é igualmente uma pessoa e igualmente capaz de auto­comunicação. Esta pessoa é o Espírito Santo.

5. Aqui vem a melhor notícia de todas. O êxtase desta terceira Pessoa, o Espírito de Deus, é em nossa dire­ção. O Espírito comunica sua pessoalidade a nós. E nós, precisamente como espírito, como criaturas feitas à imagem de Deus, por assim dizer, caracterizadas por inteligência e amor, somos capazes de receber esta in­fusão. Somos capazes de receber o Espírito de Deus no nosso espírito. E este é o beijo da boca, que por tanto tempo desejamos.

6. Não somente somos capazes de receber o Espírito infundido: somos capazes de responder a esta infusão com nosso próprio êxtase, nosso próprio fluir de nós mesmos para o Espírito. A mutualidade entre o Pai e o Filho que (em linguagem teológica) “expira” (spiratio) o Espírito, espelha-se numa mutualidade entre o Espírito de Deus e o nosso. Como vimos na reflexão sobre os relacionamentos trinitários, a posse / recepção do outro ocorre através de um ato de autodo­ação. De modo semelhante, nossa “tomada” do Espí­rito ocorre através da saída de nós mesmos nos êxtases gêmeos do intelecto e da vontade, do conhe­cimento e do amor. E este processo, como a troca entre o Pai e o Filho, não é o acontecimento de um momento. É uma realidade que, uma vez iniciada, nunca chega a um fim. Conhecida como “união trans­formativa” na tradição carmelitana (a união, uma vez estabelecida, continua a transformar o espírito hu­mano unido ao Espírito de Deus), é chamada de “unio Spiritus” – união do Espírito – na tradição cister­ciense. Esta união pode, e tem a intenção, de alcançar tal perfeição que nós possamos dizer que o Espírito de Deus e o nosso espírito formam “um” Espírito. Eu, em minha identidade espiritual, no fundo do meu ser, sou chamado a ser unus com o Espírito Santo. Este é, sem dúvida, o ponto alto da espiritualidade cisterciense, e sua base escriturística vem de S. Paulo: “aquele que se adere ao Senhor se torna um só espírito com Ele.” Talvez seja por isto que o versículo favorito de Bernardo fosse: “Mihi adhaerere Deo bonum est”, “Meu bem está em aderir-me ao Senhor”.

7. S. Bernardo exulta ao dizer que a nossa união com Deus no Espírito Santo dista somente uma letra da união entre o Pai e o Filho. Sua união é essencial e pessoal, e por esta razão eles são unum: uma mesma coisa. O Cristo joanino pode dizer muito correta­mente: “eu e o Pai somos um (unum). Mas nós temos o nosso já citado motivo de glória paulino. Em termos de completa receptividade e autodoação entre as pes­soas, nós também somos unus com o Espírito Santo.

8. Voltemos à identidade do Espírito Santo. O Espírito Santo é o beijo essencial unitivo entre o Pai e o Filho. Nele estão contidos o conhecimento e o amor do Pai ao Filho e o conhecimento e o amor do Filho ao Pai como seu abraço incessante. Se o Espírito então é der­ramado sobre nós no terceiro beijo (a propósito, o nome teológico para este estágio é “divinização”: jus­tificação, santificação, divinização), o conhecimento do Pai e do Filho é derramado em nós também. “A vida eterna”, diz Bernardo, citando Jo 17,3, “é co­nhecer-Vos, o único verdadeiro Deus e a Jesus Cristo, o qual enviastes”. Esta vida eterna nos é dada ao ser­mos beijados pelo Espírito Santo. A maioria de vocês deve conhecer o hino Veni, Creator Spiritus, um hino de Pentecostes dirigido ao Espírito Santo. Sua estrofe final começa assim: “Per te sciamus da Patrem, noscamus atque Filium”, “dai-nos, ó Espírito, que por Vós venhamos a conhecer o Pai e também o Filho”. Assim, ao sermos beijados pelo Espírito, não somos, de maneira alguma, postos para baixo, restritos a ser cidadãos de segunda classe no universo espiritual. Ao contrário, no Espírito chegamos a ter um conheci­mento contemplativo, experiencial, vivo, tanto do Pai quanto do Filho. Evidentemente, não estamos atrás de conhecimento abstrato, teológico, das pessoas divinas, mas de conhecimento pessoal, unitivo, conhecimento que é experimentado como uma fonte de água viva jorrando dentro de nós.

9. Ao mesmo tempo, este beijo é conhecimento da pessoa do Espírito também. O Espírito é “dom” (donum Dei altissimi), e receber a infusão de conhe­cimento e amor do Pai e do Filho é experimentar o que é o Espírito. O Espírito é este conhecimento e amor precisamente enquanto “derramado”, como comu­nicação. Assim, cada vez que o conhecimento e o amor mútuos do Pai e do Filho nos alcançam, nós conhecemos o Espírito. “É Ele!”

10. S. Bernardo é com freqüência chamado de “o úl­timo dos Padres”. Isto significa que ele viveu e escre­veu durante uma mudança paradigmática; neste caso, de uma visão do mundo patrística / monástica para uma escolástica. A abordagem escolástica o deixava nervoso por diversas razões, uma delas sendo uma certa tendência, na escolástica, de separar conheci­mento e amor. O próprio S. Tomás, embora não ca­indo neste erro, é com razão chamado de “intelectualista”, pelo fato de que, para ele, a Visão Beatífica era um ato do intelecto (é o intelecto que vê: visio). Para Bernardo, vindo de uma tradição mais an­tiga, era crucial manter que a experiência contempla­tiva é um ato tanto da vontade quanto do intelecto. Não é somente compreender, mas compreender e amar. Por esta razão, ele encoraja o contemplativo a receber o beijo do Espírito com ambos os lábios – o lábio da inteligência e o lábio da sabedoria, o lábio que pega e vê e o lábio que degusta. Eu ousaria dizer que Bernardo tende a inclinar-se na outra direção e a reafirmar a posição de Gregório Magno e freqüente­mente citada no século XII: “Amor ipse notitia est”, “O amor é em si mesmo conhecimento”.

11. Devemos lembrar-nos de que cada um dos beijos tem seus perigos, e de que o perigo geralmente brota de uma incapacidade de manter-se o equilíbrio (ape­gar-se aos dois pés, por exemplo). Aqui também existe um duplo perigo espiritual, que deriva exata­mente de não manterem-se unidos os aspectos inte­lectual e voluntário da experiência contemplativa. Ali onde a contemplação é buscada meramente como um conhecimento do mais alto objeto imaginável pelo nosso intelecto, cai-se na categoria de um vício mo­nástico tradicional: curiositas. Curiosidade não se torna moralmente melhor só por estar direcionada ao sublime. O intelecto automaticamente deseja conhecer e, conhecendo, dominar (como “dominar” uma lín­gua). Isto, para Bernardo, tomado isoladamente, não é um exercício de virtude, mas um tipo de libido, um tipo de concupiscência, e pior ainda quando aplicada a Deus, como se Ele fosse um pico a ser escalado. A motivação do amor está faltando e, assim, a busca de Deus torna-se outra forma de auto-afirmação, ao invés de uma expressão de adoração. Isto, penso eu, é o que mais irritava Bernardo em Abelardo: a idéia de fazer de Deus “um objeto de estudo”; poderíamos talvez dizer hoje: fazer seu doutorado sobre Deus.

12. Mas Bernardo não é cego em relação ao perigo inverso, onde é o sentimento que prevalece e de onde a compreensão está ausente. Neste caso, o resultado é o que veio a ser conhecido como “entusiasmo”: uma abordagem da religião que supervaloriza o subjetivo, que faz do sentimento religioso um objetivo em si, que não busca conhecer a Deus ou sequer unir-se a Deus, mas somente ter a sua própria interioridade es­timulada. “Vamos ter um êxtase.” Tomando nova­mente Paulo como sua base escriturística, Bernardo diz que essa atitude mostra “zelo, mas não de acordo com o conhecimento” – um zelo não inteligente. É melhor, de todos os pontos de vista, manter ambos os lábios funcionando em conjunto.

13. A experiência contemplativa de Deus, quando ge­nuína, leva a relacionamentos purificados e estabili­zados com as pessoas da Trindade. Se realmente começarmos a viver esta fusão de conhecimento e amor de Deus (que, mais uma vez, não é tanto uma experiência pontual discreta, mas uma união que per­dura e que constantemente se intensifica), nos expe­rimentaremos (os termos femininos sem serventia de Bernardo, a fim de permanecer consistente com suas imagens nupciais) como filha (filia) do Pai Celestial e irmã / noiva (soror, sponsa) do Filho Eterno. A expe­riência contemplativa procede de e existe para estes relacionamentos. Não lutamos pela contemplação; lutamos pela união pessoal com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Isto é divinização.

14. Em conferências anteriores, afirmei que cada beijo gera satisfação e insatisfação. E aqui? Para onde iría­mos? O que seria ainda maior? Por um lado, a única coisa maior está fechada para nós. Bernardo diz que nem Paulo subindo ao terceiro céu foi capaz de erguer sua boca alta o suficiente para beijar direta­mente o Pai ou o Filho, e que nem os anjos jamais o fizeram. Da mesma forma, este algo maior não é pró­prio a nós, não nos convém, e a pessoa com qualquer conhecimento real ou amor a Deus não teria qualquer interesse em aspirar a isso. Dado o que temos na unio Spiritus, uma tal hybris seria um “crime sem causa”. O desejo persiste, mas não o de escalar mais alto, simplesmente o de viver cada vez mais completa­mente aquilo que nos foi dado, vivê-lo com mais conhecimento, por assim dizer, vivê-lo com mais amor. E, obviamente, vivê-lo face a face, quando a insatisfação perderá todo o seu aspecto de frustração e será simplesmente um desejo de continuidade eterna e de crescimento, um desejo imediatamente satisfeito assim que for sentido, e imediatamente sentido de novo assim que for satisfeito.

15. uma etapa maior a ser vivida, mas externa­mente, ao invés de para cima. É um êxtase horizontal. É como uma pessoa profundamente unida com o Espírito chega a viver e a relacionar-se com os seus irmãos seres humanos. Na última conferência, tenta­remos ver como essa pessoa partilha o dom do Espírito. +

A Quinta e Última Conferência do Retiro

V. EPÍLOGO: APÓS O BEIJO DA BOCA

1. Com tanto beijo acontecendo, o inevitável sucede: a noiva engravida. O beijo do Espírito Santo é sempre procriativo, assim como nupcial. Ele une a alma a Si (ao Espírito), cria dentro da alma as capacidades espi­rituais necessárias para a maternidade e dá filhos à alma. É um casamento místico muito tradicional. Não há os anos de um só curtindo o outro para o Espírito Santo e a alma unidos como um; imediatamente há fertilidade e fecundidade. Os anos de intimidade a dois foram os anos que levaram ao beijo consumador, não os anos que o seguem. E mesmo estes anos de in­timidade eram uma preparação para a frutuosidade ainda por vir.

2. Assim, a alma descobre que é mãe. Literalmente, é uma alma mater. Como toma consciência da sua con­dição? Seu seio intumesce. Esses seios representam sua capacidade de exercer a função de maternidade na vida espiritual de outras pessoas. Bernardo (que tem nomes para tudo, como temos visto repetidamente) chama-os de congratulação e compaixão. O elemento chave é o prefixo que os dois termos têm em comum e que, em si mesmo, significa algo em comum: con. Unida íntima e estavelmente com o Espírito, a pessoa humana se torna “transpessoal”: vive como suas pró­prias as experiências daqueles que lhe são confiados. Trata-se, para S. Bernardo, do cumprimento do man­damento de amar ao próximo como a si mesmo. O Espírito Santo estica a pele de nossa subjetividade a fim de que os outros caibam por dentro, de que sinta­mos como próprias as alegrias e tristezas das outras pessoas. Elas são tão reais, tão imediatas, tão profun­damente tocantes. Quantas vezes, no corpus de seus escritos, Bernardo cita este versículo de S. Paulo aos Romanos: “Alegrai-vos com os que se alegram, chorai com os que choram.” Sem esta identificação espon­tânea e de todo o coração com o estado do outro, com o seu bem-estar genuíno e com o que ele está pas­sando na sua caminhada rumo a ele, a pessoa humana não é ainda mãe ou pai (Seleções: Pai).

3. Quem são os filhos dessa pessoa, de alguém beijado três vezes pelo Verbo e finalmente com o beijo do Espírito? Bernardo está obviamente escrevendo no contexto de uma comunidade monástica; é bem pro­vável que os sermões do seu comentário sobre o Cântico dos Cânticos representem uma forma mais desenvolvida e polida dos capítulos que dava aos seus monges. Para ele e para o auditório em cuja intenção falava, portanto, os filhos são os principiantes na vida espiritual; os noviços, certamente, assim como os ir­mãos ainda lutando por maturidade espiritual (ainda passando pelos dois primeiros beijos), algum irmão em crise. Bernardo levou muito a sério seu papel como abba, pai espiritual. Ele intuía (ou talvez sou­besse) o que os estudos recentes tornaram claro: que no título “pai espiritual”, a palavra “espírito” não é genérica, mas se refere ao Espírito Santo. “Pai no po­der do Espírito Santo”, pai capaz de ser pai por causa da luz interior da graça e do discernimento dados pelo Espírito Santo. O título dado na tradição monástica e na Regra de São Bento ao superior – “abba” (pai) – não é honorífico, um nome jurídico ou mesmo uma expressão de grande responsabilidade moral / espiri­tual. É mais que isto. A tarefa do abade é dar à luz e nutrir em maturidade aqueles que o Senhor lhe con­fiou enviando-os à comunidade monástica. Na Igreja Ocidental, em relação aos leigos, diminuímos esta noção ao nível de “direção espiritual”; na Igreja Ori­ental, ela permanece mais vital na pessoa do “ancião” que exerce uma paternidade / maternidade espiritual.

4. Juntamente com este estado de paternidade confe­rido à pessoa pelo Espírito Santo, vem uma maior li­berdade interior, uma maior despreocupação para consigo. Antes, a atenção era toda focada em Deus e em si mesmo. Agora, Deus redireciona a atenção da pessoa para o próximo, para os pequeninos. Não é que a pessoa misticamente unida a Cristo tenha se esque­cido de Deus. Ao invés disto, ela é atenta a Deus na medida em que o amor de Deus pela humanidade passa através dela. Ela olha para o próximo com com­paixão ou congratulação; experimenta esta compaixão ou congratulação como o Espírito do Cristo Ressus­citado tomando conta dos outros em e através de sua pessoa.

5. Bernardo tem uma referência escriturística encanta­dora confirmando isto. Fala das santas mulheres indo ao túmulo na manhã de Páscoa para ungir o corpo de Cristo e de como encontraram o túmulo vazio. Qual era o significado do túmulo vazio? Que a partir de então Cristo preferia ser ungido em Seu Corpo vivo, a Igreja, ao invés de em seu corpo humano individual. A mulher pecadora do primeiro beijo não somente beijou os pés de Cristo, mas os ungiu também; a pes­soa em processo de alcançar a continentia unge a cabeça de Cristo com louvor e gratidão. Ela beijada pelo Espírito Santo precisa de muito ungüento porque tem todo o Seu corpo místico para ungir.

6. Será que é possível que uma pessoa tenha ungüento suficiente para sair por aí? Bernardo tem confiança que sim. Não no começo da vida espiritual, obvia­mente; não antes que a caridade divina tenha se enrai­zado na alma (e isto ocorre após o nascimento de muitas virtudes preliminares). Dedicar-se a gerar e criar outros antes do devido tempo pode resultar no próprio empobrecimento pessoal, assim como num cuidado pastoral que realmente não é proveitoso para aqueles que estão sendo cuidados. Mas se a pessoa tiver a paciência necessária, o Espírito Santo gradu­almente encherá a bacia da fonte do seu coração até a borda. De lá ele transbordará incessantemente em atenção ativa e produtiva para com os outros, sem, de modo algum, reduzir a abundância de água encontrada no centro da fonte.

7. Comecei falando da liberdade interior da pessoa agraciada com o terceiro beijo. O que acontece essen­cialmente é que a auto-referência foi banida da vida pessoal e, em particular, foi banido o medo da dis­persão e da perda do tesouro interior. Não há mais te­souro interior e tesouro exterior; o bem-estar espiritual dos discípulos é vivido como inseparável do bem es­piritual do abba. Em algum momento da carreira de S. Bernardo, ao que parece, alguém na sua comunidade aconselhou os monges a darem ao seu abade um pouco de paz e de sossego (pode ser que tenha sido o seu celeireiro e irmão de sangue Gerardo, famoso por sua preocupação com seu irmão caçula, o abade, e a quem S. Bernardo enalteceu inesquecivelmente após a sua morte, num dos sermões da série do Cântico dos Cânticos). Bernardo não gostou do gesto, embora o tivesse apreciado, quem quer que tenha sido o seu autor. “Vocês não conseguem entender”, reclamou, “que a única vez que vocês me incomodam é quando não me incomodam?”

8. E como poderia ser diferente? Como Deus pergunta retoricamente no livro de Isaías “Pode uma mãe es­quecer-se de seus filhos?”, Bernardo apresenta a situ­ação imaginária de uma mãe sendo convidada a participar de um banquete esplêndido com a condição de que deixe seus filhos esquálidos do lado de fora. Será que alguma mãe de verdade faria isto? - pergunta Bernardo, enraivecido. Algum pai ou mãe espiritual abandonaria seus filhos num momento de necessidade para dedicar-se exclusivamente aos deleites da ora­ção? (visão do Abade Geral sobre S. Bento nos portais de pérola).

9. Este cuidado com os outros da parte da pessoa bei­jada pelo Espírito não se limita às coisas do espírito. Há uma famosa troca de correspondência entre Bernardo, alguns meses antes da sua morte, e seu prior. Ele estava fora, numa última missão de paz, e havia escrito para casa para saber como as coisas es­tavam indo. O prior respondeu que todos estavam je­juando, rezando, trabalhando e guardando silêncio, como deveriam. Bernardo não ficou satisfeito. Sabia que alguns dos irmãos não estavam no melhor da sua saúde. “Você não me contou tudo”, reclamou. “Você não me contou se a digestão deles melhorou.”

10. Isto quer dizer, então, que o fruto da vida contem­plativa é a renúncia à vida contemplativa? De jeito nenhum. Quer dizer que, através da unio Spiritus, a pessoa veio a confiar suficientemente em Deus a ponto de deixar que Ele lhe providencie tempos de contemplação. Em seu comentário sobre o versículo do Cântico dos Cânticos, “Eu te conjuro pelos cervos e pelas gazelas da floresta: não provoque, não des­perte o amor até que lhe pareça bem”, Bernardo diz que quem está falando é o próprio Cristo Senhor, que proíbe solenemente os discípulos de incomodarem sua mãe. “Sua mãe está num sono místico”, ele diz. “Está descansando em mim. Minha mão esquerda está sob a sua cabeça e a minha direita a abraça. Deixe-a estar até que eu retire a minha mão. Então ela despertará por si só e lhes dará a atenção necessária.” Pode ser que os discípulos não estejam explicitamente cônscios desta proibição. Mesmo assim obedecem. A alma mística é deixada por um tempo na paz que supera todo entendimento e, ao sair dela, está pronta para re­tornar ao seu dever e para guiar os seus filhos melhor e para mais longe do que era capaz de fazer antes.

11. Sabemos que um dos títulos de Bernardo era doctor marianus. Havia três figuras no Novo Testa­mento que o fascinavam infinitamente: Jesus, Maria e Paulo. Jesus era o noivo da sua alma, Paulo, o modelo de zelo apostólico e de caridade; e Maria, o modelo de vida esposada do Espírito, simultaneamente voltada para o interior e o exterior. Parece-me claro que, tanto na sua vida interior quanto no seu ministério abacial, ele se identificava mais com Maria. Há uma tradição da Idade Média segundo a qual Maria não está so­mente no centro do grupo dos discípulos recebendo o Espírito Santo no dia de Pentecostes, mas recebe a plenitude do Espírito, e é através dela que os outros vêm a recebê-lo. Ela media o Espírito. Bernardo diz a mesma coisa num sermão bem conhecido para o do­mingo após a Assunção, quando compara Maria com um aqueduto. Toda a graça de Cristo flui na Igreja através da mediação de Maria. É de modo análogo que, o Espírito opera na comunidade monástica / ecle­sial. Ele Se dá em união íntima ao pneumatikós (homo spiritualis) e é ele que se torna “cheio de graça” e agracia os outros no seu ensinamento, oração e ca­ridade.

12. S. Bernardo amava brincar com as palavras (como o faz seu xará). Ele inventou um par de frases: caritas veritatis e veritas caritatis. A caritas veritatis é o amor pela verdade, o voltar-se, cheio de desejo, da face e do coração para ela em suas formas mais altas, mais puras. Quanto melhor e mais nobre algo é, mais o coração será atraído para esse algo, e, acima de tudo, para Deus. Nesta ótica, o santo será mais amado que o pecador, o belo mais que o feio, o perfeito mais que o imperfeito. Mas há também a veritas caritatis, a verdade da caridade, a verdade de amar como Cristo amava. E em virtude disto, nós amamos o que precisa de nós, o que não pode ficar sem nós: o pecador antes que o santo, o bagunceiro antes que o bem-compor­tado, o frágil antes que o forte, o ignorante antes que o iluminado. Nosso coração achará todas as formas de pobreza irresistíveis – irresistíveis no sentido de se sentir solidário com elas e de querer consolá-las. A pessoa beijada pelo Espírito vive o amor e a verdade em ambas as suas combinações. Assim como o pró­prio Espírito vive completamente em Deus como o beijo que une o Pai e o Filho e ao mesmo tempo é in­cessantemente derramado na Igreja e na humanidade, assim a pessoa que vive na unio Spiritus vive inteira­mente em Deus e inteiramente para os homens. Quando lemos os Evangelhos, vemos que esta apa­rente contradição nunca foi contradição para Cristo. Porque Ele era o “ungido do Espírito”: toda a sua hu­manidade era ungida pelo Espírito.

13. Muitas vezes me perguntei por que, de todos os Padres Cistercienses, somente S. Bernardo é “Doutor da Igreja”. Ele não era o mais inteligente (Guilherme), nem o mais místico (Isaac), nem o mais jovial (João de Ford), nem o mais atraente humanamente (Elredo). Mas era aquele para quem vida mística em Deus e vida na e para a Igreja eram uma coisa só, algo indivi­sível. Ele foi beijado pelo Espírito. Fico feliz por ele ser meu santo padroeiro. +