I. PRELÚDIO AO PRIMEIRO BEIJO
1. Já nos conhecemos há tantos anos – vocês, membros da Sociedade Thomas Merton, e eu – que eu posso já lhes ter contado esta anedota. Mesmo se for o caso, acho que ela irá nos ajudar a começar.
Em 1996, quando cheguei ao Brasil, tentei mergulhar na literatura do país. Não que isto fosse um fardo; pelo contrário, era, e continua a ser, um prazer. Naturalmente, eu me esforçava para integrar ao meu vocabulário português aquilo que descobria nas obras-primas dos escritores brasileiros. Foi o que me levou, após várias semanas lendo “O Tempo e o Vento”, de Érico Veríssimo, a dizer a um dos monges mais velhos, enquanto o acompanhava à portaria numa bela manhã de primavera: “Bom dia, meu bem.” Sua resposta foi ao mesmo tempo engraçada e teologicamente perfeita: “Não tão rápido!”.
2. Veja que ele não negou a possibilidade de intimidade. Simplesmente deixou claro que intimidade, não obstante quaisquer afirmações em contrário por parte da cultura moderna, não é instantânea, mas progressiva. É uma meta que precisa de um caminho de aproximação. É um longo processo, belo e correto em todos os seus passos, se cada um dos passos for dado, e dado na ordem correta.
3. Todos nós queremos intimidade. Todos nós almejamos comunhão. Sobretudo com Deus. Desejamos isto, pois nascemos para isto. Fomos estruturados de tal forma que nem sequer possuímos a nossa identidade, a não ser em nosso relacionamento com Deus e através desse relacionamento. Isto faz parte daquilo do que significa termos sido criados “à sua imagem e semelhança”. É perseverando em sua imagem e buscando tornarmo-nos cada vez mais como Ele que terminamos sendo nós mesmos.
4. A energia que nos impele a aderir a Ele (o versículo da Escritura absolutamente favorito de S. Bernardo era: “Mihi adhaerere Deo bonum est”), a ir atrás Dele é o eros ou, no latim de Bernardo, amor. Este amor está no centro de nosso ser; talvez possamos dizer que é o centro de nosso ser. Mas não fomos nós que o fizemos. Foi Deus quem o formou e o colocou em nós, e é através dele (desse amor) que mais nos assemelhamos a Deus, Ele que é o Amor em Pessoa.
5. Este desejo de união com Deus é tão forte que é descrito pelos Padres, a partir de Orígenes, como um inebriar-se, ou ainda mais, uma loucura (eros maniakós, amor louco). Os loucos têm má fama por não terem discrição, paciência nem prudência. Querem o que querem quando querem e do jeito que querem. Por esta razão, não observam as conveniências, não aceitam a idéia de caminhar em passos, pelo menos no seu desejo. Querem tudo – agora. É por isto que o Cântico dos Cânticos, texto base de todo misticismo cristão, começa com um pedido do máximo: que Ele – Deus mesmo – me beije com o beijo de Sua boca.
6. Este nosso desejo não nos será concedido imediatamente – não pode sê-lo e mais tarde veremos por que –, mas será o cume de uma série de beijos preparatórios. Mesmo assim, de acordo com S. Bernardo e toda a tradição mística, a pessoa tem alguma justificativa para este ardor intempestivo. Qual justificativa? Que a experiência de tal intimidade, além de ser nosso desejo mais profundo, é também uma memória. É algo que aconteceu, algo que nós, como parte da família humana, experimentamos. Então não se trata somente de algo que queremos; é algo que soubemos. E sendo assim, ele muda da categoria de desejo genérico para a categoria de saudade.
7. Para compreender isto, temos de viajar para muito atrás no tempo, para os inícios de nossa espécie, para aquelas duas pessoas das quais proviemos e das quais somos – Adão e Eva, nossos protoparentes, como a tradição os denomina. De acordo com a Bíblia e com a sua interpretação patrística, Adão e Eva eram “contemplativos por natureza”. Suas mentes e seus corações estavam incessantemente fixos em Deus, não como um dever ou uma obrigação, mas simplesmente como sua atividade principal – seu respirar-se espiritual. Sua vida interior era fundamentalmente intimidade com Deus. S. Bernardo, ao comentar a referência do Gênesis que diz que Deus colocou Adão no jardim do Éden para cultivá-lo e ará-lo, explica que o que Adão cultivava eram pensamentos contemplativos. Seu coração e sua mente fitavam Deus e ele crescia continuamente em sabedoria e em graça ao manter esta orientação da sua acies mentis (Gregório de Nissa diz algo semelhante em sua Vida de Moisés ao explicar que, ao pastorear os rebanhos de Jetro próximo ao local da Sarça Ardente, Moisés estava, na verdade, pastoreando pensamentos contemplativos, pensamentos “noéticos”, na tradição grega). Adão foi, assim, o primeiro a “caminhar com Deus”. Deus caminhava com ele todos os dias na brisa do fim da tarde. A todas as outras criaturas, Deus permitiu que Adão desse um nome, mas foi o próprio Deus quem pronunciou o nome de Adão pela primeira vez (“Onde estás, Adão?”).
8. A unidade e perseverança do olhar de Adão a Deus era o que o mantinha em sua própria unidade. Ele era consistente e harmonioso consigo mesmo porque todas as suas energias estavam voltadas amorosamente para o seu Criador e seu Arquétipo, de quem ele continuamente recebia vida desimpedidamente. Todos os Padres são claros ao dizer que Deus criou a humanidade deste modo – íntegra, reta, destinada à vida eterna. Em seus últimos sermões sobre o Cântico dos Cânticos, Bernardo fala longamente sobre o homem tal como Deus o criou, tal como Deus o desejou – simples, livre e imortal (Sermão 82).
9. Na grande e primordial tragédia da humanidade, o homem e a mulher desviaram o seu olhar de Deus. Não foi um momento isolado de negligência, um erro inoportuno. Foi uma decisão com conseqüências quase sem limites este desviar do olhar do coração para si mesmo e em seguida fazer as suas escolhas não com base na comunhão com Deus, mas em termos daquilo que parece vantajoso e desejável para si mesmo (deixando Deus fora de consideração). É tanto a causa quanto a conseqüência do pecado original; o homo incurvatus in se.
10. Para os Padres, e acredito que para nós também, é importante ler esta página crucial da Escritura não tanto etiológica quanto existencialmente. Uma das rimas mais antigas da poesia inglesa coloca isto desta maneira: “Na queda de Adão/ Todos nós pecamos” (In Adam’s Fall/ We sinned all). Esta escolha de nos distanciarmos de Deus a fim de fazer de nós mesmos o objetivo e o objeto de nossa própria satisfação é algo que todos nós fizemos e fazemos. São Paulo se esforça muito em comunicar isto no magnífico e difícil capítulo sexto da sua Carta aos Romanos: “Todos morreram, porque todos pecaram.” Todos nós somos orientados a fazer a escolha ruim entre as duas possibilidades de focalizarmo-nos em Deus ou focalizarmo-nos em nós mesmos, e de fato todos nós a fazemos.
11. Quais são as conseqüências desta trágica escolha? A primeira e pior é uma alteração profunda de nossa experiência de Deus. De objeto de nosso desejo, alegria e confiança, Ele se transforma em temível e perigoso. A primeira coisa que Adão e Eva fazem após inventarem o pecado é ir se esconder. “Onde estás, Adão?”. “Eu percebi que estava nu e fiquei com medo”. O relacionamento com Deus é transformado: de um relacionamento de amor, passa a ser um relacionamento de poder; de um relacionamento de confiança, a um de desconfiança. É uma posição incômoda, e finalmente insustentável, viver sempre na presença-ausência de um Deus opressor, muito poderoso. S. Bernardo afirma que o corpo não pode suportar uma ferida aberta por muito tempo. Ele ou se curará ou vai formar uma cicatriz. Analogicamente, a ferida de nossa ruptura com Deus não pode ser sustentada por muito tempo. Ou haverá um retorno a Ele, ou Ele será excluído de nossa mente enquanto objeto de nossa consciência (awareness). Toda a tradição monástica, em particular a Regra de S. Bento no capítulo sobre a humildade, coloca uma ênfase imensa na reaquisição da memoria Dei, “ter consciência de Deus”. Ao fazê-lo, ela deseja lutar contra a tendência muito forte a “esquecer Deus” – oblivio Dei – a viver sem Deus, como se Deus não existisse (a breve definição do salmo de um “estulto”).
12. A segunda conseqüência é um despedaçar de nossa unidade original. Enquanto antes tínhamos um só pensamento e um só desejo (não que fôssemos incapazes ou nos esquecêssemos da realidade criada, mas tudo era experimentado e fruído num “único raio de contemplação” – Ricardo de S. Vítor), agora somos todo-dispersão, todo-distração. Queremos uma multidão de coisas; estamos preocupados com uma infinidade de assuntos. Pensamos que teremos paz ao atingir o objeto do desejo do momento, só para descobrirmos que, ao consegui-lo, o desprezamos e saímos caçando outro objeto. Achamos que nossa mente terá descanso ao resolver a preocupação do momento, só para descobrir que sempre há outra preocupação virando a esquina e que, na verdade, aprendemos a gostar de ficar preocupados (S. Bernardo utiliza um versículo do Antigo Testamento para descrever este hábito: “Efraim aprendeu a amar debulhar o solo”). Numa imagem altamente violenta, Bernardo nos descreve como uma tela de vidro, um vitral, que foi quebrado por um martelo em milhões de cacos. Nosso desejo e nossa atenção foram quase que irremediavelmente fragmentados. É um otimismo impressionante por parte dos Padres monásticos o fato de propor como objeto de compromisso ascético a “reunificação do desejo”.
13. Esta fragmentação mostra-se diariamente na guerra interior que travamos conosco e sobre nós mesmos. Introduzimos na criação o princípio da rebelião, diz Bernardo. E agora é este mesmo princípio que se vinga de nós. Ao retirarmos o nosso espírito de ser guiado pelo Espírito Santo, nosso corpo ia se retirando de ser orientado por nosso próprio espírito. Nossos corpos não mais obedecem aos nossos espíritos; eles não mais “ouvem a razão”. A razão, a presença da Inteligência Divina dentro de nós, tornou-se a mais fraca das nossas faculdades. Para Bernardo, ela é o pai impotente de uma família desordeira. A vontade desenfreada é muito mais forte do que ela, e ainda mais fortes são os impulsos incessantes que recebem o nome coletivo de “concupiscência”. Nosso eu interior tornou-se uma família disfuncional. A razão, posta no ser humano para perceber, pesar, julgar e então decidir, foi completamente subjugada pelo desejo desfocado, não-examinado e inquieto. Então não estamos em paz (o texto clássico bernardiano sobre este tema é o seu “Sermão sobre a Conversão para os Clérigos”. A tradição diz que, após ouvi-lo pregar, quarenta estudantes de teologia abandonaram a universidade e voltaram com ele para Claraval).
14. Há outras duas conseqüências igualmente sérias: ignorância / falta de atenção e dureza de coração. Para Bernardo, antes de empreendermos a vida espiritual, não reconhecemos quem somos e não percebemos a realidade (e gravidade) de nossa situação. “Se você não conhece a você mesma, ó mais bela das mulheres, tome lugar atrás do rebanho de seus vizinhos.” A alma, o eu interior, é esta mais bela das mulheres. Mas, desviada de Deus, ela gradualmente perde consciência da sua identidade e da sua responsabilidade. Torna-se reducionista na sua compreensão de si mesma (cada vez mais nos tempos modernos, a ponto de questionar a existência de uma alma, onde ela é mais ela mesma) e na sua compreensão do propósito da vida. Sem refletir, a pessoa permite que “o mundo” defina o que é a vida: educação, emprego, namoro, casamento e família, lazer e descanso, pôr de lado a morte para o último (e além do último) instante ou antecipá-la porque a jornada até ela pode ser demasiado dolorosa, física ou psicologicamente. A vida se torna barata porque a ignorância negou a sua transcendência. A vida, ao invés de ser gloriosa, se torna tolerável, mantida através de uma série de pequenas satisfações.
15. E a dureza de coração? Nós mesmos somos esta dureza, na medida em que estamos armados contra todos os apelos de Deus a despertar e voltar atrás. Algumas vezes, Bernardo vê o próprio Deus de mãos atadas diante desta situação. Inspirações, graças ou advertências não penetram o coração, não deixam sequer uma impressão. Do dia da queda até o dia do Juízo Final, toda a história da salvação é “Deus em busca do homem” (como o título do livro de Abraham Heschel o expressa), mas o homem pode se tornar impermeável, tanto que pode continuar inacessível mesmo quando desejaria que as coisas o tocassem.
16. Nossos pontos de partida na viagem para a união mística com Deus são vários. Por um lado, fomos feitos para ela, já a experimentamos, nunca podemos erradicar completamente o nosso desejo dela. Por outro, nós a rejeitamos, a perdemos, fazemos o máximo para prosseguir sem precisar dela, construímos uma casca que torna muito difícil para nós receber o auxílio de Deus para recuperá-la. Deus é o Deus do real e não apagará a história humana para começar tudo de novo (será que simplesmente não repetiríamos nossa performance anterior?). Mas Ele toma o nosso desejo e faz dele uma estrada de volta a Ele, uma estrada de beijos, na mentalidade bernardiana. Estes beijos farão o mesmo percurso que nossa alienação de Deus nos fez cobrir, só que, desta vez, estaremos viajando na direção correta. Mestre Eckhart diz que a distância da volta da alienação é do mesmo tamanho que a da ida. Que seja assim. Não é isto que importa, mas sim que, através do beijo dos pés, das mãos e da boca do Cristo Deus, cada passo dado é um passo mais para perto da união com Ele. Desde o primeiríssimo instante, nosso desejo poderia e deveria ser o de experimentar o beijo de Sua boca. É isto que nos vai fazer caminhar e que nos manterá em movimento. Mas, como S. Tomás disse: “Primeiro na intenção, último na execução.” O que desejamos desde o início será o fim de nossa jornada. Agora é tempo de começar a jornada, aos pés de Cristo. +
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2 comentários:
Simplesmente divino, parabéns a todos vocês que nos presenteiam com maravilhas como esta. Deus os abençoe!!!
A beleza da reflexão nos leva a desejar cada vez mais estarmos na intimidade do Divino Amado. São Bernardo é simplesmente um enamorado de Deus e nos transmite esse amor e nos leva a apaixonar pelas suas palavras e atitudes de seguimento. Obrigado pela belíssima reflexão. Em Cristo, Pe. Carlos
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