quinta-feira, 13 de março de 2008

Terceira Conferência do Retiro

III. O BEIJO DA MÃO

1. S. Bernardo, infelizmente, nunca teve o prazer de ouvir Carol Channing cantando: “um beijo na mão pode ser muito elegante, na moda, mas diamantes são os melhores amigos de uma moça”. Mesmo se tivesse escutado, pediria licença para discordar, ou pelo menos para distinguir. Depende da mão de quem você está beijando. Se estiver beijando a mão de Deus com o beijo da amizade, você não poderia desejar melhor amigo.

2.Este segundo beijo dado na mão de Deus e dado pela mão de Deus é o dom da santificação. Pelo pri­meiro beijo, humilhamo-nos aos pés de Cristo em compunção e fomos acolhidos de volta ao relaciona­mento filial com Ele. No segundo beijo, Sua divina mão nos levanta (erigere) a fim de estarmos em pé diante dele, “santos e justos na sua presença, todos os dias de nossa vida”, como cantamos no Benedictus. É-nos dada de volta a nossa beleza moral.

3. No que esta santidade consiste? Na liberação pro­gressiva de tudo dentro de nós que nos faz agir contra nossos melhores interesses, nossos desejos mais pro­fundos. Todos nós conhecemos a famosa passagem de Rm 7 onde S. Paulo lamenta o paradoxo de não poder fazer o que realmente quer, mas ver-se compelido a fazer o que realmente não quer. Ele vive profunda­mente contrariado consigo mesmo. Seus fios elétricos foram trocados e todos os dias ele acaba fazendo o não-desejado e deixando de fazer o desejado. “Quem poderá me libertar desta situação?”, exclama angus­tiado. “Deus que nos deu a vitória em Cristo” é sua alegre resposta à sua própria pergunta.

4. Este é o segundo beijo – “liberdade de espírito” (libertas spiritus). Bernardo começa chamando-a de continentia, que pode parecer um termo negativo ou repressivo, mas que está plenamente em acordo com a tradição monástica ascético-mística. Em seus estágios iniciais, liberdade é a capacidade de parar de fazer aquilo que involuntariamente nos vemos compelidos a fazer (embora compelidos por nós mesmos) e que nos deforma. É liberdade permanente e estável de tre­mendas pressões que até então nos têm forçado a ceder, dia após dia, a impulsos de irritação, ansiedade, tristeza, auto-absorção, timidez, desconfiança, so­lipsismo, indulgência em prazeres compensatórios. Estas eram as pressões que nos empurravam a come­ter pecados concretos dos quais nos arrependemos na época de nosso primeiro beijo. Agora nos é oferecida a oportunidade de libertar-nos não somente das ações, mas também do impulso insistente por trás das ações.

5. Como participamos neste processo de libertação? Num dos capítulos à sua comunidade (De Diversis, 17), Bernardo fala de três custódias: das mãos, da lín­gua e do coração – de atos, palavras e pensamentos, diríamos. Estas custódias representam uma crescente sensibilização àquilo que está dentro de nós e, de modo correspondente, a uma capacidade maior de es­colher nossos comportamentos, palavras e pensa­mentos, que termina como uma escolha firme e fixa do bem. Como S. Agostinho diz: “Liberdade é a capa­cidade de sempre escolher o bem.”

6. Na medida em que nos refreamos e não cometemos atos que reconhecemos como sendo prejudiciais ou opostos à vontade de Deus, começamos a escutar-nos a nós mesmos. Não que não falássemos antes, mas não identificávamos as forças passionais que faziam parte da nossa fala. O autocontrole (continentia) que exercemos sobre as nossas ações torna possível uma atenção às verdadeiras intenções daquilo que dizemos e da carga emocional por trás do que dizemos. Todos nós já tivemos a experiência de contar uma piada que saiu pela culatra, que o outro levou a mal. Antes, atri­buíamos sua reação à sua hipersensibilidade. Agora percebemos que realmente pode ter havido uma indi­reta grosseira no meio da nossa anedota. Percebemos que grande parte do que dizemos não tem sentido: dito somente para preencher um silêncio desconfortável ou para nos distrair de coisas que poderiam ter sido ditas dentro de nosso silêncio interior.

7. Se formos capazes de passar da custódia das mãos à custódia da língua – se formos capazes de falar so­mente o que devemos falar (pergunta feita a S. Sil­vano) –, começaremos a ouvir-nos pensar. Este é um trabalho de muitos anos – a habilidade de registrar conscientemente nossos pensamentos, de acompanhar nossos pensamentos momento após momento – ava­liá-los e fazer uma triagem. Num nível ainda mais profundo, está a percepção dos pensamentos profun­dos, subjacentes, que entram na composição da nossa personalidade e que estão sempre criando pensa­mentos pequenos, concretos, como epiphenomena. Segundo S. Bernardo, pode ser difícil passar por isto, porque esses pensamentos freqüentemente estão pre­sentes em nós não somente como produções da nossa interioridade, mas como receptividade a sugestões demoníacas. São tentações, como as três que lemos ter Jesus experimentado no deserto. Todavia, não está além do alcance da nossa liberdade identificar cada vez mais perfeitamente estes pensamentos, resistir a eles e por fim conquistá-los.

8 .Uma questão poderia ser colocada: com todo este trabalho requerido da nossa parte, porque chamar este processo de beijo divino? Esta é uma pergunta im­portante, porque manifesta uma compreensão inade­quada do relacionamento entre graça e liberdade. A graça nunca é uma substituição da nossa liberdade. Deus não nos pede para sacrificar ou entregar a nossa liberdade, prometendo-nos em troca que nos torna­remos “bons”. O trabalho da graça é a progressiva capa­citação da nossa liberdade. Quando Deus “beija nossa liberdade”, por assim dizer, e nós aceitamos este beijo de Deus em nossa liberdade (que, apesar de tudo, é a escolha básica da nossa liberdade: estar ou não aberta ao influxo de Deus), descobrimos que so­mos capazes de fazer o que queremos e devemos. Deus não o faz por nós – permanece sendo nosso dever fazê-lo. E, ao mesmo tempo, não o fazemos em isolamento – Deus não fica a uma distância para ver se vamos fazer certo ali, mas está dentro da nossa li­berdade, oferecendo-se a ela constantemente, inspi­rando-a constantemente, iluminando-a constante­mente, a fim de que possamos fazer o que realmente desejamos fazer.

9. Por esta razão, Bernardo afirma que as duas dimen­sões deste segundo beijo são latitudo e fortitudo. Por um lado, Deus continuamente dilata (latitudo) o es­paço de nossa liberdade. Cada vez mais, as nossas ações, palavras e mesmo os nossos pensamentos e imaginações não são jogados sobre nós, mas são se­rena e refletidamente tomados por nós. Com o passar dos anos, por exemplo, Ele lixa a nossa irritabilidade, que exercia uma influência negativa sobre nossos rela­cionamentos e colocava uma margem de insatisfação em nossa existência cotidiana, transformando-nos em resmungadores assumidos. A diminuição de nossa irri­tabilidade é um aumento de liberdade. Não mais somos “programados” para ser insatisfeitos com a nossa existência ou para tornar os outros vítimas de nosso mal-estar. Percebemos a tendência, mas senti­mos uma leveza, uma capacidade de pular isto. Por outro lado, este beijo é uma fortitudo. Talvez pudés­semos compará-lo a uma verba bilateral (“matching grant”), onde, se meu mosteiro conseguir levantar dez mil reais, haverá um compromisso do Banco Tal de contribuir com outros dez mil reais. Eu atuo na minha liberdade, na medida em que sou capaz, e Deus confirma a escolha, lhe dá substância e durabilidade, impede-a de cair para trás sobre si mesma, capacita-me para que eu escolha corretamente numa próxima vez. Então talvez seja ainda mais generoso do que um “matching grant”.

10. Para Bernardo, esta consciência do quanto Deus efetivamente promove / sustenta a nossa liberdade é muito importante. Sem isto, corremos um sério risco de falta de verdade espiritual. Lembra-se do duplo risco do primeiro beijo, de cair tanto em esperança excessiva quanto em temor excessivo? Aqui o risco é o de receber este segundo beijo sem dar-se conta de que ele foi dado. De certo modo, este perigo é um re­trocesso ao período anterior à conversão, quando achávamos que a existência era toda feita pelo homem e desenvolvida por ele. Aqui, transposto em outra chave, o perigo é atribuir exclusivamente a nós mes­mos a transformação da nossa liberdade. Isto, diz Bernardo, significaria que, ao invés de beijar a mão de Deus em gratidão (maior dentre todas as virtudes ber­nardianas), acabamos beijando a nossa própria mão, agradecendo só a nós mesmos por aquilo que a graça operou em nós. Há somente uma palavra para des­crever o que tal atitude seria: feia.

11. Esta época do segundo beijo, que faz paralelo com a segunda renúncia nos escritos de Cassiano, assim como o conteúdo básico da Regra de S. Bento, é para S. Bernardo um tempo muito feliz. Ele não pensa tanto nele em termos de esforço, embora requeira es­forço. Não pensa tanto nele em termos de luta contra os nossos inimigos espirituais, embora a luta seja neces­sária. Para ele, é um tempo de vitórias e, por­tanto, um tempo de cantar, um tempo de cantos de louvor. É claro para ele que Deus será – está sendo – vitorioso na alma que Ele trouxe de volta para si em arrependimento. Deus não vai parar na metade deste segundo beijo. Num dado momento, Ele irá levantar decisivamente a pessoa para além do seu hábito peca­minoso contra o qual a pessoa tem batalhado por anos. Livre! E a pessoa canta de alegria. Em outro mo­mento, Ele colocará em poder da pessoa a capacidade de praticar consistentemente uma virtude que até en­tão lhe escapava. Hora de um segundo canto. Em ainda outro momento, Ele abrirá a mente da pessoa para uma compreensão muito mais profunda de um texto da Escritura ou de um dogma em particular. Isto também será fonte de alegria e, da mesma forma, será uma poderosa influência positiva em nossa liberdade moral. Assim como o Antigo Testamento é um livro de cantos preliminares de louvor que conduz ao Cântico dos Cânticos, que é a Encarnação e a união de Cristo e da Igreja, assim também esta restauração gra­dual da nossa liberdade é uma série de cânticos de ação de graças e de louvor, preparando-nos para o nosso Cântico dos Cânticos individual, a experiência do terceiro beijo. Para mim, este é um dos aspectos mais atraentes de S. Bernardo e dos Padres Cister­cienses. O esforço ascético é colocado dentro do seu próprio contexto de renovação da plena intimidade entre Deus e a criatura espiritual. Por esta razão, em­bora duro, ele não é triste ou tenso; é tocado e tingido pela alegria do que está se realizando.

12. Crescimento em virtude, diz Bernardo, também faz crescer em confiança (fiducia). Crescimento em confiança, por sua vez, faz crescer em ousadia de de­sejo. Tendo sido posto em pé pela mão de Deus e tendo beijado a mão de Deus, a noiva não pode res­tringir-se a reiterar o seu desejo inicial. Bernardo in­venta um diálogo gostoso entre os anjos e a alma (o cristão místico), que nós conseguimos compreender muito bem, porque espelha o nosso próprio desenvol­vimento. Os anjos a provocam e dizem: “Você se lembra de como prometeu que ficaria satisfeita com o primeiro beijo, se Deus lhe desse a graça do arrepen­dimento vivificante?” “Sim, mas...” “E você se lembra de como deu a sua palavra que, se Deus lhe mostrasse a imensa misericórdia de renovar a sua semelhança (similitudo) em você pela restauração do funciona­mento da sua liber-dade, você nunca mais voltaria a pedir algo de novo?”. E o que a noiva responde: “Não posso descansar enquanto ele não me beijar com o beijo de sua boca. Não é que eu seja ingrata. Mas é que eu amo. Tento raciocinar comigo mesma, tento manter-me dentro dos limites da modéstia, mas meu desejo me arrasta e meu anseio me incita. Há tanto tempo que espero e vivo fielmente de acordo com a Sua vontade. Entreguei-Lhe minha vida como ofe­renda. Agora quero que esta oferenda seja suculenta e saborosa. É tudo o que eu peço: que Ele me beije com o beijo da Sua boca.”

13. Deus, que infundiu o desejo e cujos dons ante­riores (compunção e liberdade / pureza de coração) não são senão incentivos para um desejo ainda maior, não tem a intenção de recusar à noiva o seu desejo. Era só uma questão de prepará-la. Estes dois beijos fizeram dela outra pessoa – uma pessoa capaz de re­ceber, de levar e de responder ao imenso privilégio que lhe está para ser dado. Qual é este privilégio e quais efeitos ele produz na alma? Nós veremos isto nas duas últimas confe­rências. Amanhã o Cristo Senhor realizará o de­sejo da sua criatura. +

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