quinta-feira, 13 de março de 2008

Quarta Conferência do Retiro

IV. O BEIJO DA BOCA

1. Numa jogada muito interessante, S. Bernardo es­colhe descrever o beijo final, objeto do desejo mais fundamental e ardente da pessoa, em termos daquilo que ele não é mas quase é. A tensão entre este beijo – a mais alta união atingível por uma criatura – e o outro beijo – inatingível por qualquer criatura – mar­cará toda a sua abordagem desta graça sublime.

2. Ontológica e historicamente anterior a qualquer beijo – a qualquer intimidade, qualquer união – entre Deus e Sua criatura (por mais favorecida que esta seja), é o beijo eterno trinitário. Este “beijo” entre o Pai e o Filho é a própria mutualidade dinâmica da vida trinitária. É o ato recíproco que constitui as rela­ções trinitárias. Isto é, este beijo é o “conhecimento” absoluto (abraço, posse) e doação de Si do Pai ao Filho e o “conhecimento” absoluto que o Filho tem do Pai. É o ato eterno, primário, pelo qual o Pai, conhe­cendo a Si mesmo, gera o Filho, que é a plenitude do Pai, conhecido pelo próprio Pai, conhecido como essencialmente um e pessoalmente outro. Este ato se “completa”, por assim dizer, na resposta do Filho, co­nhecer como ele é conhecido, conhecer tão comple­tamente e tão “autodoadamente” como o Pai o conhece. Temos a tendência instintiva de pensar em conhecimento como “aquisição”. Conhecemos assi­milando para nós. Entretanto, o conhecimento trinitá­rio (base de todo conhecimento) é extático. O Pai conhece o Filho ao sair de si mesmo, ao dar-Se sem limites. O “Filho conhecido” é a autodoação ilimitada do Pai para fora de Si mesmo. O Filho conhece o Pai ao derramar-Se radicalmente de volta no Pai, ao esva­ziar-Se no Pai. Este conhecimento como dom de si é, assim, também amor irrestrito, amor que conhecemos melhor, diz Bernardo, quando se encarna e, portanto, do lado do Filho. A aceitação da paixão por parte do Filho é um Liebestod, uma doação total de sua vida por amor ao Pai. Este conhecimento e este amor es­senciais e totais que o Pai e o Filho têm um do outro e um para com o outro é o seu “beijo”.

3. É isto, diz Bernardo, que nunca podemos compre­ender. Nunca podemos ser nem o Pai nem o Filho, nunca poderemos ser um dos participantes deste abraço essencial. Nunca poderemos conhecer total­mente o Pai ou o Filho (como Gilberto de Hoyland, outro Padre Cisterciense diz, somente o consubstan­cial pode conhecer o consubstancial). Mesmo assim – e eis aí o milagre –, enquanto não realizamos o beijo trinitário, não somos excluídos dele. Por desígnio di­vino, somos incluídos nele. Como?

4. Pensando bem, diz Bernardo, um beijo é um ato iniciado por duas pessoas. Uma vez que começa a acontecer, ele é também uma realidade em si – em forma física, é a unidade / mutualidade entre os dois “beijadores”. Acontece que, neste caso (os dois beija­dores sendo ambos pessoas divinas), a unidade que os une substancialmente não é uma coisa, mas uma pes­soa. O conhecimento e amor recíproco dos dois é igualmente uma pessoa e igualmente capaz de auto­comunicação. Esta pessoa é o Espírito Santo.

5. Aqui vem a melhor notícia de todas. O êxtase desta terceira Pessoa, o Espírito de Deus, é em nossa dire­ção. O Espírito comunica sua pessoalidade a nós. E nós, precisamente como espírito, como criaturas feitas à imagem de Deus, por assim dizer, caracterizadas por inteligência e amor, somos capazes de receber esta in­fusão. Somos capazes de receber o Espírito de Deus no nosso espírito. E este é o beijo da boca, que por tanto tempo desejamos.

6. Não somente somos capazes de receber o Espírito infundido: somos capazes de responder a esta infusão com nosso próprio êxtase, nosso próprio fluir de nós mesmos para o Espírito. A mutualidade entre o Pai e o Filho que (em linguagem teológica) “expira” (spiratio) o Espírito, espelha-se numa mutualidade entre o Espírito de Deus e o nosso. Como vimos na reflexão sobre os relacionamentos trinitários, a posse / recepção do outro ocorre através de um ato de autodo­ação. De modo semelhante, nossa “tomada” do Espí­rito ocorre através da saída de nós mesmos nos êxtases gêmeos do intelecto e da vontade, do conhe­cimento e do amor. E este processo, como a troca entre o Pai e o Filho, não é o acontecimento de um momento. É uma realidade que, uma vez iniciada, nunca chega a um fim. Conhecida como “união trans­formativa” na tradição carmelitana (a união, uma vez estabelecida, continua a transformar o espírito hu­mano unido ao Espírito de Deus), é chamada de “unio Spiritus” – união do Espírito – na tradição cister­ciense. Esta união pode, e tem a intenção, de alcançar tal perfeição que nós possamos dizer que o Espírito de Deus e o nosso espírito formam “um” Espírito. Eu, em minha identidade espiritual, no fundo do meu ser, sou chamado a ser unus com o Espírito Santo. Este é, sem dúvida, o ponto alto da espiritualidade cisterciense, e sua base escriturística vem de S. Paulo: “aquele que se adere ao Senhor se torna um só espírito com Ele.” Talvez seja por isto que o versículo favorito de Bernardo fosse: “Mihi adhaerere Deo bonum est”, “Meu bem está em aderir-me ao Senhor”.

7. S. Bernardo exulta ao dizer que a nossa união com Deus no Espírito Santo dista somente uma letra da união entre o Pai e o Filho. Sua união é essencial e pessoal, e por esta razão eles são unum: uma mesma coisa. O Cristo joanino pode dizer muito correta­mente: “eu e o Pai somos um (unum). Mas nós temos o nosso já citado motivo de glória paulino. Em termos de completa receptividade e autodoação entre as pes­soas, nós também somos unus com o Espírito Santo.

8. Voltemos à identidade do Espírito Santo. O Espírito Santo é o beijo essencial unitivo entre o Pai e o Filho. Nele estão contidos o conhecimento e o amor do Pai ao Filho e o conhecimento e o amor do Filho ao Pai como seu abraço incessante. Se o Espírito então é der­ramado sobre nós no terceiro beijo (a propósito, o nome teológico para este estágio é “divinização”: jus­tificação, santificação, divinização), o conhecimento do Pai e do Filho é derramado em nós também. “A vida eterna”, diz Bernardo, citando Jo 17,3, “é co­nhecer-Vos, o único verdadeiro Deus e a Jesus Cristo, o qual enviastes”. Esta vida eterna nos é dada ao ser­mos beijados pelo Espírito Santo. A maioria de vocês deve conhecer o hino Veni, Creator Spiritus, um hino de Pentecostes dirigido ao Espírito Santo. Sua estrofe final começa assim: “Per te sciamus da Patrem, noscamus atque Filium”, “dai-nos, ó Espírito, que por Vós venhamos a conhecer o Pai e também o Filho”. Assim, ao sermos beijados pelo Espírito, não somos, de maneira alguma, postos para baixo, restritos a ser cidadãos de segunda classe no universo espiritual. Ao contrário, no Espírito chegamos a ter um conheci­mento contemplativo, experiencial, vivo, tanto do Pai quanto do Filho. Evidentemente, não estamos atrás de conhecimento abstrato, teológico, das pessoas divinas, mas de conhecimento pessoal, unitivo, conhecimento que é experimentado como uma fonte de água viva jorrando dentro de nós.

9. Ao mesmo tempo, este beijo é conhecimento da pessoa do Espírito também. O Espírito é “dom” (donum Dei altissimi), e receber a infusão de conhe­cimento e amor do Pai e do Filho é experimentar o que é o Espírito. O Espírito é este conhecimento e amor precisamente enquanto “derramado”, como comu­nicação. Assim, cada vez que o conhecimento e o amor mútuos do Pai e do Filho nos alcançam, nós conhecemos o Espírito. “É Ele!”

10. S. Bernardo é com freqüência chamado de “o úl­timo dos Padres”. Isto significa que ele viveu e escre­veu durante uma mudança paradigmática; neste caso, de uma visão do mundo patrística / monástica para uma escolástica. A abordagem escolástica o deixava nervoso por diversas razões, uma delas sendo uma certa tendência, na escolástica, de separar conheci­mento e amor. O próprio S. Tomás, embora não ca­indo neste erro, é com razão chamado de “intelectualista”, pelo fato de que, para ele, a Visão Beatífica era um ato do intelecto (é o intelecto que vê: visio). Para Bernardo, vindo de uma tradição mais an­tiga, era crucial manter que a experiência contempla­tiva é um ato tanto da vontade quanto do intelecto. Não é somente compreender, mas compreender e amar. Por esta razão, ele encoraja o contemplativo a receber o beijo do Espírito com ambos os lábios – o lábio da inteligência e o lábio da sabedoria, o lábio que pega e vê e o lábio que degusta. Eu ousaria dizer que Bernardo tende a inclinar-se na outra direção e a reafirmar a posição de Gregório Magno e freqüente­mente citada no século XII: “Amor ipse notitia est”, “O amor é em si mesmo conhecimento”.

11. Devemos lembrar-nos de que cada um dos beijos tem seus perigos, e de que o perigo geralmente brota de uma incapacidade de manter-se o equilíbrio (ape­gar-se aos dois pés, por exemplo). Aqui também existe um duplo perigo espiritual, que deriva exata­mente de não manterem-se unidos os aspectos inte­lectual e voluntário da experiência contemplativa. Ali onde a contemplação é buscada meramente como um conhecimento do mais alto objeto imaginável pelo nosso intelecto, cai-se na categoria de um vício mo­nástico tradicional: curiositas. Curiosidade não se torna moralmente melhor só por estar direcionada ao sublime. O intelecto automaticamente deseja conhecer e, conhecendo, dominar (como “dominar” uma lín­gua). Isto, para Bernardo, tomado isoladamente, não é um exercício de virtude, mas um tipo de libido, um tipo de concupiscência, e pior ainda quando aplicada a Deus, como se Ele fosse um pico a ser escalado. A motivação do amor está faltando e, assim, a busca de Deus torna-se outra forma de auto-afirmação, ao invés de uma expressão de adoração. Isto, penso eu, é o que mais irritava Bernardo em Abelardo: a idéia de fazer de Deus “um objeto de estudo”; poderíamos talvez dizer hoje: fazer seu doutorado sobre Deus.

12. Mas Bernardo não é cego em relação ao perigo inverso, onde é o sentimento que prevalece e de onde a compreensão está ausente. Neste caso, o resultado é o que veio a ser conhecido como “entusiasmo”: uma abordagem da religião que supervaloriza o subjetivo, que faz do sentimento religioso um objetivo em si, que não busca conhecer a Deus ou sequer unir-se a Deus, mas somente ter a sua própria interioridade es­timulada. “Vamos ter um êxtase.” Tomando nova­mente Paulo como sua base escriturística, Bernardo diz que essa atitude mostra “zelo, mas não de acordo com o conhecimento” – um zelo não inteligente. É melhor, de todos os pontos de vista, manter ambos os lábios funcionando em conjunto.

13. A experiência contemplativa de Deus, quando ge­nuína, leva a relacionamentos purificados e estabili­zados com as pessoas da Trindade. Se realmente começarmos a viver esta fusão de conhecimento e amor de Deus (que, mais uma vez, não é tanto uma experiência pontual discreta, mas uma união que per­dura e que constantemente se intensifica), nos expe­rimentaremos (os termos femininos sem serventia de Bernardo, a fim de permanecer consistente com suas imagens nupciais) como filha (filia) do Pai Celestial e irmã / noiva (soror, sponsa) do Filho Eterno. A expe­riência contemplativa procede de e existe para estes relacionamentos. Não lutamos pela contemplação; lutamos pela união pessoal com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Isto é divinização.

14. Em conferências anteriores, afirmei que cada beijo gera satisfação e insatisfação. E aqui? Para onde iría­mos? O que seria ainda maior? Por um lado, a única coisa maior está fechada para nós. Bernardo diz que nem Paulo subindo ao terceiro céu foi capaz de erguer sua boca alta o suficiente para beijar direta­mente o Pai ou o Filho, e que nem os anjos jamais o fizeram. Da mesma forma, este algo maior não é pró­prio a nós, não nos convém, e a pessoa com qualquer conhecimento real ou amor a Deus não teria qualquer interesse em aspirar a isso. Dado o que temos na unio Spiritus, uma tal hybris seria um “crime sem causa”. O desejo persiste, mas não o de escalar mais alto, simplesmente o de viver cada vez mais completa­mente aquilo que nos foi dado, vivê-lo com mais conhecimento, por assim dizer, vivê-lo com mais amor. E, obviamente, vivê-lo face a face, quando a insatisfação perderá todo o seu aspecto de frustração e será simplesmente um desejo de continuidade eterna e de crescimento, um desejo imediatamente satisfeito assim que for sentido, e imediatamente sentido de novo assim que for satisfeito.

15. uma etapa maior a ser vivida, mas externa­mente, ao invés de para cima. É um êxtase horizontal. É como uma pessoa profundamente unida com o Espírito chega a viver e a relacionar-se com os seus irmãos seres humanos. Na última conferência, tenta­remos ver como essa pessoa partilha o dom do Espírito. +

Nenhum comentário: