quinta-feira, 13 de março de 2008

A Quinta e Última Conferência do Retiro

V. EPÍLOGO: APÓS O BEIJO DA BOCA

1. Com tanto beijo acontecendo, o inevitável sucede: a noiva engravida. O beijo do Espírito Santo é sempre procriativo, assim como nupcial. Ele une a alma a Si (ao Espírito), cria dentro da alma as capacidades espi­rituais necessárias para a maternidade e dá filhos à alma. É um casamento místico muito tradicional. Não há os anos de um só curtindo o outro para o Espírito Santo e a alma unidos como um; imediatamente há fertilidade e fecundidade. Os anos de intimidade a dois foram os anos que levaram ao beijo consumador, não os anos que o seguem. E mesmo estes anos de in­timidade eram uma preparação para a frutuosidade ainda por vir.

2. Assim, a alma descobre que é mãe. Literalmente, é uma alma mater. Como toma consciência da sua con­dição? Seu seio intumesce. Esses seios representam sua capacidade de exercer a função de maternidade na vida espiritual de outras pessoas. Bernardo (que tem nomes para tudo, como temos visto repetidamente) chama-os de congratulação e compaixão. O elemento chave é o prefixo que os dois termos têm em comum e que, em si mesmo, significa algo em comum: con. Unida íntima e estavelmente com o Espírito, a pessoa humana se torna “transpessoal”: vive como suas pró­prias as experiências daqueles que lhe são confiados. Trata-se, para S. Bernardo, do cumprimento do man­damento de amar ao próximo como a si mesmo. O Espírito Santo estica a pele de nossa subjetividade a fim de que os outros caibam por dentro, de que sinta­mos como próprias as alegrias e tristezas das outras pessoas. Elas são tão reais, tão imediatas, tão profun­damente tocantes. Quantas vezes, no corpus de seus escritos, Bernardo cita este versículo de S. Paulo aos Romanos: “Alegrai-vos com os que se alegram, chorai com os que choram.” Sem esta identificação espon­tânea e de todo o coração com o estado do outro, com o seu bem-estar genuíno e com o que ele está pas­sando na sua caminhada rumo a ele, a pessoa humana não é ainda mãe ou pai (Seleções: Pai).

3. Quem são os filhos dessa pessoa, de alguém beijado três vezes pelo Verbo e finalmente com o beijo do Espírito? Bernardo está obviamente escrevendo no contexto de uma comunidade monástica; é bem pro­vável que os sermões do seu comentário sobre o Cântico dos Cânticos representem uma forma mais desenvolvida e polida dos capítulos que dava aos seus monges. Para ele e para o auditório em cuja intenção falava, portanto, os filhos são os principiantes na vida espiritual; os noviços, certamente, assim como os ir­mãos ainda lutando por maturidade espiritual (ainda passando pelos dois primeiros beijos), algum irmão em crise. Bernardo levou muito a sério seu papel como abba, pai espiritual. Ele intuía (ou talvez sou­besse) o que os estudos recentes tornaram claro: que no título “pai espiritual”, a palavra “espírito” não é genérica, mas se refere ao Espírito Santo. “Pai no po­der do Espírito Santo”, pai capaz de ser pai por causa da luz interior da graça e do discernimento dados pelo Espírito Santo. O título dado na tradição monástica e na Regra de São Bento ao superior – “abba” (pai) – não é honorífico, um nome jurídico ou mesmo uma expressão de grande responsabilidade moral / espiri­tual. É mais que isto. A tarefa do abade é dar à luz e nutrir em maturidade aqueles que o Senhor lhe con­fiou enviando-os à comunidade monástica. Na Igreja Ocidental, em relação aos leigos, diminuímos esta noção ao nível de “direção espiritual”; na Igreja Ori­ental, ela permanece mais vital na pessoa do “ancião” que exerce uma paternidade / maternidade espiritual.

4. Juntamente com este estado de paternidade confe­rido à pessoa pelo Espírito Santo, vem uma maior li­berdade interior, uma maior despreocupação para consigo. Antes, a atenção era toda focada em Deus e em si mesmo. Agora, Deus redireciona a atenção da pessoa para o próximo, para os pequeninos. Não é que a pessoa misticamente unida a Cristo tenha se esque­cido de Deus. Ao invés disto, ela é atenta a Deus na medida em que o amor de Deus pela humanidade passa através dela. Ela olha para o próximo com com­paixão ou congratulação; experimenta esta compaixão ou congratulação como o Espírito do Cristo Ressus­citado tomando conta dos outros em e através de sua pessoa.

5. Bernardo tem uma referência escriturística encanta­dora confirmando isto. Fala das santas mulheres indo ao túmulo na manhã de Páscoa para ungir o corpo de Cristo e de como encontraram o túmulo vazio. Qual era o significado do túmulo vazio? Que a partir de então Cristo preferia ser ungido em Seu Corpo vivo, a Igreja, ao invés de em seu corpo humano individual. A mulher pecadora do primeiro beijo não somente beijou os pés de Cristo, mas os ungiu também; a pes­soa em processo de alcançar a continentia unge a cabeça de Cristo com louvor e gratidão. Ela beijada pelo Espírito Santo precisa de muito ungüento porque tem todo o Seu corpo místico para ungir.

6. Será que é possível que uma pessoa tenha ungüento suficiente para sair por aí? Bernardo tem confiança que sim. Não no começo da vida espiritual, obvia­mente; não antes que a caridade divina tenha se enrai­zado na alma (e isto ocorre após o nascimento de muitas virtudes preliminares). Dedicar-se a gerar e criar outros antes do devido tempo pode resultar no próprio empobrecimento pessoal, assim como num cuidado pastoral que realmente não é proveitoso para aqueles que estão sendo cuidados. Mas se a pessoa tiver a paciência necessária, o Espírito Santo gradu­almente encherá a bacia da fonte do seu coração até a borda. De lá ele transbordará incessantemente em atenção ativa e produtiva para com os outros, sem, de modo algum, reduzir a abundância de água encontrada no centro da fonte.

7. Comecei falando da liberdade interior da pessoa agraciada com o terceiro beijo. O que acontece essen­cialmente é que a auto-referência foi banida da vida pessoal e, em particular, foi banido o medo da dis­persão e da perda do tesouro interior. Não há mais te­souro interior e tesouro exterior; o bem-estar espiritual dos discípulos é vivido como inseparável do bem es­piritual do abba. Em algum momento da carreira de S. Bernardo, ao que parece, alguém na sua comunidade aconselhou os monges a darem ao seu abade um pouco de paz e de sossego (pode ser que tenha sido o seu celeireiro e irmão de sangue Gerardo, famoso por sua preocupação com seu irmão caçula, o abade, e a quem S. Bernardo enalteceu inesquecivelmente após a sua morte, num dos sermões da série do Cântico dos Cânticos). Bernardo não gostou do gesto, embora o tivesse apreciado, quem quer que tenha sido o seu autor. “Vocês não conseguem entender”, reclamou, “que a única vez que vocês me incomodam é quando não me incomodam?”

8. E como poderia ser diferente? Como Deus pergunta retoricamente no livro de Isaías “Pode uma mãe es­quecer-se de seus filhos?”, Bernardo apresenta a situ­ação imaginária de uma mãe sendo convidada a participar de um banquete esplêndido com a condição de que deixe seus filhos esquálidos do lado de fora. Será que alguma mãe de verdade faria isto? - pergunta Bernardo, enraivecido. Algum pai ou mãe espiritual abandonaria seus filhos num momento de necessidade para dedicar-se exclusivamente aos deleites da ora­ção? (visão do Abade Geral sobre S. Bento nos portais de pérola).

9. Este cuidado com os outros da parte da pessoa bei­jada pelo Espírito não se limita às coisas do espírito. Há uma famosa troca de correspondência entre Bernardo, alguns meses antes da sua morte, e seu prior. Ele estava fora, numa última missão de paz, e havia escrito para casa para saber como as coisas es­tavam indo. O prior respondeu que todos estavam je­juando, rezando, trabalhando e guardando silêncio, como deveriam. Bernardo não ficou satisfeito. Sabia que alguns dos irmãos não estavam no melhor da sua saúde. “Você não me contou tudo”, reclamou. “Você não me contou se a digestão deles melhorou.”

10. Isto quer dizer, então, que o fruto da vida contem­plativa é a renúncia à vida contemplativa? De jeito nenhum. Quer dizer que, através da unio Spiritus, a pessoa veio a confiar suficientemente em Deus a ponto de deixar que Ele lhe providencie tempos de contemplação. Em seu comentário sobre o versículo do Cântico dos Cânticos, “Eu te conjuro pelos cervos e pelas gazelas da floresta: não provoque, não des­perte o amor até que lhe pareça bem”, Bernardo diz que quem está falando é o próprio Cristo Senhor, que proíbe solenemente os discípulos de incomodarem sua mãe. “Sua mãe está num sono místico”, ele diz. “Está descansando em mim. Minha mão esquerda está sob a sua cabeça e a minha direita a abraça. Deixe-a estar até que eu retire a minha mão. Então ela despertará por si só e lhes dará a atenção necessária.” Pode ser que os discípulos não estejam explicitamente cônscios desta proibição. Mesmo assim obedecem. A alma mística é deixada por um tempo na paz que supera todo entendimento e, ao sair dela, está pronta para re­tornar ao seu dever e para guiar os seus filhos melhor e para mais longe do que era capaz de fazer antes.

11. Sabemos que um dos títulos de Bernardo era doctor marianus. Havia três figuras no Novo Testa­mento que o fascinavam infinitamente: Jesus, Maria e Paulo. Jesus era o noivo da sua alma, Paulo, o modelo de zelo apostólico e de caridade; e Maria, o modelo de vida esposada do Espírito, simultaneamente voltada para o interior e o exterior. Parece-me claro que, tanto na sua vida interior quanto no seu ministério abacial, ele se identificava mais com Maria. Há uma tradição da Idade Média segundo a qual Maria não está so­mente no centro do grupo dos discípulos recebendo o Espírito Santo no dia de Pentecostes, mas recebe a plenitude do Espírito, e é através dela que os outros vêm a recebê-lo. Ela media o Espírito. Bernardo diz a mesma coisa num sermão bem conhecido para o do­mingo após a Assunção, quando compara Maria com um aqueduto. Toda a graça de Cristo flui na Igreja através da mediação de Maria. É de modo análogo que, o Espírito opera na comunidade monástica / ecle­sial. Ele Se dá em união íntima ao pneumatikós (homo spiritualis) e é ele que se torna “cheio de graça” e agracia os outros no seu ensinamento, oração e ca­ridade.

12. S. Bernardo amava brincar com as palavras (como o faz seu xará). Ele inventou um par de frases: caritas veritatis e veritas caritatis. A caritas veritatis é o amor pela verdade, o voltar-se, cheio de desejo, da face e do coração para ela em suas formas mais altas, mais puras. Quanto melhor e mais nobre algo é, mais o coração será atraído para esse algo, e, acima de tudo, para Deus. Nesta ótica, o santo será mais amado que o pecador, o belo mais que o feio, o perfeito mais que o imperfeito. Mas há também a veritas caritatis, a verdade da caridade, a verdade de amar como Cristo amava. E em virtude disto, nós amamos o que precisa de nós, o que não pode ficar sem nós: o pecador antes que o santo, o bagunceiro antes que o bem-compor­tado, o frágil antes que o forte, o ignorante antes que o iluminado. Nosso coração achará todas as formas de pobreza irresistíveis – irresistíveis no sentido de se sentir solidário com elas e de querer consolá-las. A pessoa beijada pelo Espírito vive o amor e a verdade em ambas as suas combinações. Assim como o pró­prio Espírito vive completamente em Deus como o beijo que une o Pai e o Filho e ao mesmo tempo é in­cessantemente derramado na Igreja e na humanidade, assim a pessoa que vive na unio Spiritus vive inteira­mente em Deus e inteiramente para os homens. Quando lemos os Evangelhos, vemos que esta apa­rente contradição nunca foi contradição para Cristo. Porque Ele era o “ungido do Espírito”: toda a sua hu­manidade era ungida pelo Espírito.

13. Muitas vezes me perguntei por que, de todos os Padres Cistercienses, somente S. Bernardo é “Doutor da Igreja”. Ele não era o mais inteligente (Guilherme), nem o mais místico (Isaac), nem o mais jovial (João de Ford), nem o mais atraente humanamente (Elredo). Mas era aquele para quem vida mística em Deus e vida na e para a Igreja eram uma coisa só, algo indivi­sível. Ele foi beijado pelo Espírito. Fico feliz por ele ser meu santo padroeiro. +

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