quinta-feira, 13 de março de 2008

Segunda Conferência do Retiro

II. O BEIJO DOS PÉS

1 Começamos por baixo: pelos pés. Teologica­mente, este beijo é conhecido como “justificação”; não, entretanto, como uma declaração de “ino­cente” feita pelo Deus Juiz em nosso favor, mas como uma verdadeira restauração do relaciona­mento entre Ele e cada um de nós. Como esse mi­lagre acontece?

2. Na última conferência, Bernardo (o santo, não o pecador diante de vocês hoje) nos mostrou clara­mente que a ruptura no relacionamento é baseada numa “deshumanização” de nossos corações. Esquecimento de Deus, ignorância das realidades espirituais da vida e de nossa verdadeira identi­dade como seres humanos, impermeabilidade à graça – todas estas são doenças cardíacas. Por esta razão, nenhuma declaração judicial pode arrumar as coisas entre Deus e nós; o que é necessário é uma radical “mudança do coração” (conversio cordis).

3. De fato, o coração de Deus nunca mudou a nosso respeito. Mesmo após o nosso afastamento Dele, continua sendo como era antes. “Os meus pensamentos são pensamentos de paz”, diz Deus, embora estes passem despercebidos, assim como nossas existências inteiras, em todas as suas dimensões, continuam a ser fundadas na sua bene­volência. Nós aceitamos avidamente os benefícios, mas somos cegos para com o Benfeitor por trás deles, que continua sendo amoroso e estando de braços abertos apesar da falta de correspondência de nossa parte. As doenças do coração acima refe­ridas fizeram com que ficássemos quase exclusi­vamente “carnais”, no sentido de tornar-nos incapazes de experimentar o espírito. Deus, como diz S. João, é Espírito, e é, portanto, para nós, invisível, incognoscível. Somos, como Bernardo diz, muito mais suscetíveis a interpretar as bases da existência como consistindo em destino, sorte ou “forças” indefinidas, ou na mera atividade humana (um mundo fechado à transcendência).

4. Deus consegue tornar-se visível a nós, comu­nicar a verdadeira natureza das Suas intenções a nosso respeito e demonstrar a imensidade da Sua benevolência através da Encarnação do Verbo. Cristo é, diz Bernardo, citando e brincando com uma citação da carta de Paulo a Tito, a humanitas Dei – a humanidade de Deus. Em latim, no qual Bernardo era um mestre consumado, humanitas significa tanto a “condição de ser um ser humano” quanto a “atitude de ser profundamente humano” – isto é, ser gente e gentil ao mesmo tempo. Toda a existência de Cristo, do berço à sepultura e à res­surreição, é uma transposição perfeitamente bem-lograda de Deus no humano. Cada uma de suas ações comunica a realidade de Deus e suas dispo­sições para conosco.

5. O que exatamente aprendemos sobre Deus em Cristo? Que Ele se importa conosco, que se sente movido por todas as nossas necessidades, que toma as nossas dores sobre nós, que nos cura, que não nos condena, que age como se fosse o nosso servo, que tem poder sobre todas as coisas que nos atemorizam (demônios, doença e morte), que compartilha a Si mesmo para “nos enriquecer com Sua pobreza”, que nos alimenta e nos sustenta (multiplicação dos pães), que não nos esconde nada, mas deseja que conheçamos “os mistérios do Reino”, que nos ama a ponto de preferir nossa ale­gria eterna à Sua sobrevivência humana.

6. Tudo isto bate em nosso coração, martela em nosso coração, perfura o nosso coração. Nós não conhecíamos a Deus, ou pensávamos que Ele fosse muito diferente, um Deus abaixo dos nossos pa­drões, digno de ser rejeitado por nós (como real­mente o foi na Paixão). Esta luz divina em Cristo que revela Deus a nós tem um segundo, e insepa­rável, efeito igualmente importante: revela-nos a nós mesmos. Na medida em que começamos, uma vez mais, em Cristo, a ver Deus como Ele é, novamente começamos, em Cristo, a ver-nos como somos. E nem tudo o que vemos a nosso respeito é bonito.

7. Estas duas consciências se unem em uma – a consciência de Deus como Amor, como Pai, como Senhor e a consciência de nossa negligência em relação a Ele e de haver levado uma vida inteira­mente autocentrada, fixada em nossos objetivos próprios e freqüentemente esquecida ou destrui­dora do bem real de nosso próximo. A fusão destas duas consciências é a consciência do pecado, de ser um pecador. Interessante: só é possível ser um pecador quando Deus existe e quando ele é radi­calmente bom. Esta experiência é classicamente descrita como compunção na Igreja Ocidental (penthos na Igreja Oriental), de pungere, perfurar. Em Cristo, Deus operou uma ruptura na dureza de nossos corações. Colocou o dedo no velho, mara­vilhoso, relacionamento, fez com que nos sentís­semos pesarosos por tê-lo perdido e, por fim, profundamente arrependidos por tudo isto ter sido culpa nossa. É por isto que a compunção é caracte­rizada por dois fenômenos físicos: uma sensação de queimação e o derramar de muitas lágrimas.

8. Compunção, entretanto, seria insuportável – seria o próprio inferno – se fosse somente a cons­ciência do pecado e a experiência de perda. Seria tão terrível que, apesar de toda a sua razão obje­tiva de existir, nós encontraríamos um meio de fu­gir dela, de endurecer o nosso coração mais e mais decididamente. Isto é de fato o que ocorre quando falta a intuição do outro aspecto da compunção: a segurança do perdão. O Cristo amoroso em cuja presença discernimos a verdade sobre Deus e so­bre nós mesmos é o Cristo que diz à mulher peca­dora na casa de Simão, o Fariseu (assim como a tantos outros): “Os teus pecados estão perdoados.”

9. Esta conjunção é o beijo dos pés de Cristo e a cena de Lc 7 é a base escriturística para a descri­ção de Bernardo. Todos estes aspectos – encontro com Deus tal como Ele é, experiência de si mesmo como pecador, arrependimento e a experiência do perdão – ocorrem unidas num único fenômeno em muitos lugares do Evangelho. Pode-se pensar no Filho Pródigo abraçando o seu pai, ou no bom la­drão recebendo a promessa do Paraíso de Cristo na tarde da Sexta-Feira Santa, ou no publicano peca­dor que ficava repetindo com os olhos baixos: “Senhor, tende piedade de mim, pecador” e que voltou para casa “justificado”. É o ponto de virada no destino espiritual de alguém (e, infelizmente, sempre inclui uma segunda pessoa incapaz no momento de adentrar na experiência: Simão, o fi­lho mais velho, o outro ladrão, o fariseu dando graças no templo por não ser como os outros homens).

10. S. Bernardo está preocupado se este beijo não vai conseguir atrair a nossa atenção ou se não vai interessar a Deus. Ao contrário. Esta experiência de arrependimento e perdão marca o começo da santidade. “É aí (aos pés de Cristo) que a etíope mudou a sua pele e recobrou a sua inocência. É aí que ela deixou o fardo dos seus pecados e se revestiu de santidade (“Sancta peccatrix peccata deposuit, induit sanctitatem”). Quanto a Deus, temos o testemunho dos Evangelhos de que “há mais alegria no céu entre os anjos de Deus por um só pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não necessitam de conversão”.

11. Este beijo inicial de compunção não deve ser entrecortado – é um beijo demorado. Não é preciso ter pressa para terminar com ele, para levantar a cabeça e buscar beijos melhores, mais elevados. Devemos esperar de cabeça baixa e expressão constrangida até que Cristo diga a palavra de per­dão. Isto também é misericórdia, mais do que vin­gança. Arrependimento demanda tempo. Houve um longo acúmulo de atos, atitudes e omissões que ofenderam a Deus e, mesmo psicologica­mente, precisamos de tempo para lembrar de tudo isso e lamentá-lo devidamente. É por isto que S. Bernardo diz que o trabalho do noviço é chorar. Geralmente, o noviciado monástico é uma expe­riência intensa do primeiro beijo – o escancarar do coração, o encontro com sua própria pecaminosi­dade, as lágrimas, a palavra libertadora de Cristo. Doloroso no início, torna-se consolador esvaziar o coração da culpa e da amargura acumuladas, dei­xando sair tudo, “sacudido pelos soluços benfa­zejos” (salutaribus intra se succussa singultibus). Guilherme de St-Thierry, grande amigo de S. Ber­nardo, dizia que o que ele mais desejava era chorar no colo de Deus.

12. De fato, a compunção não chega a um fim. Não se trata aqui de insinuar que o perdão de Deus é condicional ou revogável, mas sim que a meta­nóia continua sendo a base permanente da vida espi­ritual. Na tradição monástica ela se torna um modo de vida. É viver em “alegre pesar” ou “ale­gria pesarosa”, pesar por haver ofendido a um Deus que se torna cada vez mais amável aos nos­sos olhos, pesar pelos pecados que aparecem cada vez mais claramente em suas verdadeiras cores (Ícone de Nossa Senhora); alegria porque agora pertencemos de coração e alma a este Deus, ale­gria em experimentar uma vez após a outra, e sempre como algo novo, a graça do perdão. Sere­mos sempre pecadores perdoados; tire esta funda­ção e a casa espiritual desmorona. Ao mesmo tempo, a experiência da compunção será gradual­mente absorvida em formas maiores de intimidade com Deus.

13. S. Bernardo, que é capaz de tomar um beijo e transformá-lo em três (raciocínio: se a alma pede para ser beijada com o beijo da boca de Deus, coisa tão óbvia que não precisa ser dita, deve ser porque Deus pode ser beijado em outras partes), toma aqui um pé e o transforma em dois. Com­punção, como vimos, é um equilíbrio dinâmico entre pesar e alegria – pesar por haver abusado da santidade de Deus, alegria por ter recebido sua mi­sericórdia (iudicium / misericordia). Não é difícil perdermos o nosso equilíbrio; Bernardo, falando autobiograficamente (ou pseudo-autobiografica­mente) diz que, em diferentes ocasiões, inclinou-se demais seja para um lado, seja para outro. O Cristo Senhor tem dois pés, diz Bernardo, e deve­mos apegar-nos persistentemente a ambos. Com estes dois pés, Cristo caminha em nossa mente – quer dizer, forma o conteúdo de nossa memória. Se nos apegarmos demasiadamente ao pé da santi­dade de Deus, o que predominará em nós será o medo: medo do que fizemos e daquele a quem o fizemos, e a possibilidade de condenação mesmo agora. Isto nos torna demasiadamente rigorosos em nossas práticas, rígidos em nossas atitudes, tensos em nossas emoções. Se, por outro lado, pensarmos exclusivamente na misericórdia de Deus, o que toma conta de nós é a esperança. Es­perança é bom, evidentemente, mas não uma espe­rança não nuançada pelo temor divino. Tal esperança nos torna laxos em nossas responsabili­dades, negligentes em nossa vida espiritual, des­cuidados na abordagem de nossa vocação. Esta é a maneira como Bernardo afirma um princípio que lhe é caro ao coração: os dois piores pecados são o desespero e a presunção. O caminho para além de ambos é atrelar em nossa mente estes atributos gêmeos de Deus – justiça / santidade e misericórdia, como diz o salmista: “Quero cantar a misericórdia e a justiça” (Sl 100).

14. Não obstante sua renomada (e genuína) casti­dade, Bernardo sabia por experiência pessoal que um beijo cria tanto satisfação quanto insatisfação. É o cumprimento do desejo e o estímulo do desejo – de uma satisfação ainda maior. Dificilmente po­deríamos reclamar de Deus se o máximo que ele concedesse ao pecador fosse a remissão dos pe­cados e a redescoberta do relacionamento. Mas nosso amor é incansável e não pode parar por aí (na verdade, não pode parar nunca) e nosso eros é somente um pálido reflexo do Seu eros por nós. Isto quer dizer que chegou a hora do beijo da boca, o que quer que isto signifique (esse beijo só é conhecido por aquele que o experimentou). Lem­bremo-nos da sabedoria do monge de Novo Mundo: “Não tão rápido!”. Deus realmente deseja levar-nos a esta plenitude, mas por graus. Ainda há um grau intermédio a ser atingido, um pulinho, mais que um pulo diretamente dos pés à boca. Este segundo estágio, este segundo beijo, provavel­mente é o que levará mais tempo para se realizar. Compunção demora a vir, mas, uma vez que co­meça, adquire grande velocidade e intensidade. O segundo beijo é mais deliberado, mais reflexivo, mais pacífico. Trata-se de um processo de recons­trução da pessoa, e o nome de Bernardo para ele é o beijo das mãos. Nossa aceitação deste lento es­tágio médio é muitíssimo agradável a Deus. Baseia-se numa das virtudes centrais do catálogo bernardiano: modéstia (verecundia). Então, na próxima conferência, se Deus quiser, nós beija­remos a sua mão. +

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